sábado, 16 de agosto de 2008

Gabriel

*
Narrador
Gabriel é um menino de dez anos e há oito está naquele depósito de crianças esperando uma adoção. Ele perdeu a conta de quantos amiguinhos já se foram levados para novos lares. Mas eram crianças brancas de cabelos lisos e ele não. À medida que o tempo passa mais difícil fica de sair dali.

Gabriel
Como gostaria de estar morto
Sem ter culpa nem remorsos
Muito longe desse mundo torto
E de sofrimentos até os ossos.

Um filho não é como um dejeto
Que sem valia vai para o lixo
Não! Um filho não é um objeto,
Não se faz isso nem com bicho

A mulher quando engravida
Traz ao mundo um ser humano
Chega à Terra nova vida
Não pode ficar em abandono...

Eu não pedi a ninguém pra nascer
Eu vim por um acidente apenas,
Tudo foi um momento de prazer,
Entre gemidos, promessas e pernas.

Eu me sinto um empecilho,
Foi grande pra mim o estrago,
Eles nunca me chamaram filho,
Não tive um beijo ou um afago.

Narrador
O drama de Gabriel não era um casuísmo. Todas aquelas pequenas almas tinham um história amarga de vida.
Mas ele, entre outros desafortunados, tinha uma enorme desvantagem: era um negro. Tinha um belo rosto, mas isso não fazia muita diferença. Até mesmo os casais negros o rejeitavam porque, por incrível que pareça, eles próprios têm preconceito social com relação à própria raça.
Naquela semana iria haver o almoço anual no qual receberiam a visita de pessoas interessadas em adotar uma criança. Todos se preparavam previamente para aquele dia com aulas de etiquetas para impressionar os visitantes e serem escolhidos. Era mais ou menos como nos antigos leilões de escravos. Ficavam expostos, eles examinavam, olhavam os dentes, procuravam por marcas na pele, enfim...

Gabriel
À noite às vezes penso:
Que esse mundo é imenso
Tantas famílias na esperança
De adotarem uma criança

Por que essa vida sem nexo?
Eu me pergunto perplexo.
Por que tem que ser assim
Nesse dissabor sem fim?

Eu não sou bebida amarga
Pra cuspir e dar descarga.
O que me fizeram foi abuso
Eles deveriam estar reclusos.

Eu imploro Senhor, me escuta:
Nessa minha tristeza absoluta
Que uma família me escolha
E em seu seio me recolha.

Narrador
Enfim chegou o grande dia. Muito riso, música infantil, comida em excesso. E os casais foram fazendo suas escolhas: ficaram com a Carmem, minha melhor amiga, os gêmeos Rodrigo e Thiago, Pedro o mentiroso enquanto eu e outros negros fomos sobrando. Éramos dezoito e apenas dois foram adotados. Nenhuma criança branca ficou de fora. Houve até uma espécie de sorteio para a Carmem o que foi patético.
O dia já estava terminando juntamente com minhas esperanças quando chegou um senhor negro, com uma aparência distinta acompanhado de uma senhora –provavelmente sua esposa- e olharam em volta.
Eram quarentões e pareciam boa gente. Mostraram-se decepcionados pelas poucas opções de escolha, mas queriam uma criança negra. A senhora pôs os olhos sobre mim e percebi uma mutua simpatia. Ela cutucou o marido: -aquele ali.
O homem respondeu: -Calma, Carla, há outras opções.
A mulher impacientou-se:- Eu não quero outras opções. Quero aquele ali!Após uma entrevista eles tiveram uma boa impressão de minha pessoa e o homem, que posteriormente soube chamar-se Thiago elogiou a escolha da mulher.

Gabriel
Por essa bênção, obrigado,
E por atender meus apelos
Livrando-me desse pesadelo,
Nesse rebanho de gado.

Já não suportava o castigo
De ser sempre renegado
Sendo colocado de lado
No abandono desse abrigo.

Caso houvesse outra opção
Eu escolheria estar morto,
Seria melhor um aborto
Do que aguardar adoção.

Narrador
E em uma semana, Thiago e Carmem foram buscar o moleque. Gabriel estava ansioso para conhecer uma família de verdade, diferente daquela destroçada que o abandonou ali.
Quando ele saiu daquele lugar, deu uma última olhada antes de entrar no carro de Thiago. Aliás, um belo carro. Eles viajaram por uma longa hora e a paisagem foi mudando aos poucos. Thiago morava em um bairro nobre da cidade com belas casas de classe média. Era um lindo condomínio.
Quando chegaram havia uma senhora esperando. Era uma empregada que há muito estava na família. Neusa o recebeu sorrindo e me tomou pela mão dizendo: - vamos conhecer teu irmão João.
Aquela frase soou muito estranho para Gabriel. Ele não tinha uma noção clara do que é uma família.
É como se ele tivesse nascido naquele momento e com aquela idade naquela casa.Eles subiram até um quarto no segundo andar da ampla casa. João estava brincando com um videogame e precisou ser chamado três vezes para volver a cabeça.

João
Eu disse que não carecia
Arranjar-me um irmão.
Eu gosto dessa solidão
De curtir minhas fantasias.

Mas papai é cabeça dura
E não me levou em conta
E mesmo assim me afronta
Trazendo essa criatura.

Muito prazer e até já
Que estou ocupado agora
Então pode dar o fora
E me deixa em meu lugar.

Neusa
Mas o que é isso João? Seu pai ficaria muito triste se assistisse essa cena. Ele se preocupa com você e acha que precisa de outra criança nessa casa para fazer-lhe companhia. Agora comporte-se como um Maia e fale direito com o Gabriel.

Narrador
Na verdade João era um bom menino, porém extremamente mimado e julgava que o mundo girava ao seu redor. Ele via em Gabriel uma ameaça como alguém que iria dividir os carinhos antes exclusivos dos seus pais.
Mas ele aceitou a presença de Gabriel e eles começaram a conversar. Havia regras a serem seguidas: os brinquedos, por exemplo, eram intocáveis. Ele só poderia brincar com eles na presença e com o consentimento de Gabriel. E foram muitos outros pode isso e não pode aquilo que Gabriel ficou tonto.
Mas o tempo passou e eles até que se davam bem. Mas Gabriel sempre achou que havia alguma coisa no ar. Uma espécie de preconceito. Ele nunca se achou um filho de verdade e notava pequenas diferenças de tratamento entre ele e João, filho biológico do casal. Entretanto ele foi crescendo e chegou à conclusão que isso era aceitável, desde que bem administrado.
Eles cresceram e estudaram juntos no mesmo colégio. João era um ótimo aluno, mas Gabriel tinha muitas dificuldades nos estudos. Ele gostava mesmo de praticar esportes. Matriculou-se na academia que havia no condomínio onde morava e passava boa parte do tempo livre lá, levantando pesos.

João
Eu vou dizer algo profético:
Muitas vezes eu me envergonho
Como um horrível sonho
E eu acho você patético.

Você passa metade do dia
Suando às voltas com pesos
E isso provoca um desprezo
Pois acho uma coisa vazia.

Tanta massa muscular pra que?
Pra arranjar um subemprego?
Mais parece presente de grego
Mas eu acho que você não vê.

Narrador
Havia retratos de João nas paredes da sala e em outros cômodos, além de diversos pôsteres. De Gabriel havia pouquíssimas fotos e se tivessem que escolher um dos dois sob qualquer hipótese, Gabriel era sempre delegado à segunda instância.
Eles tornaram-se adultos. João formou-se em medicina e com apenas 34 anos era um renomado cirurgião. Gabriel tornou-se um famoso atleta na modalidade de levantamento de pesos. Era um verdadeiro armário com uma força descomunal, capaz de tirar do chão centenas de quilos.
João casou-se com Alice, uma jovem colega de faculdade e tinha uma filhinha linda. A esposa era branca e a menina nasceu uma mulata que era um encanto. Tinha cinco anos de idade.
Certo dia Gabriel estava na academia próximo à casa dos pais, onde ainda morava e João descansava em casa com a mulher e a filha. Era um sábado tranqüilo quando houve um deslizamento de terra nos fundos da casa de João e uma das paredes cedeu, soltando uma pesada viga de concreto que sustentava o teto, caindo tudo em cima da filha deles. Foi uma coisa horrorosa. João correu para o quarto da menina e, de pronto, achou que ela estava morta. Não haveria como escapar de um acidente daqueles, ou haveria?
Na verdade, miraculosamente, ele viu a filha encostada ao que sobrara de uma parede sem nenhum ferimento sério aparente. Ele correu para pegar a menina mas percebeu que o pé estava preso sob a enorme viga e, para completar, a filha parecia estar entrando em estado de choque. Ele precisava fazer algo com urgência. A mulher chegou logo atrás, desesperada logo em seguida alguns vizinhos que ouviram o enorme barulho. Todos tentavam em vão retirar a viga de cima da pequena, mas ela simplesmente não se movia. João pediu para a mulher pegar seus petrechos médicos porque ele precisava levar a filha imediatamente para o hospital antes que fosse tarde demais.
A mulher Alice entrou em desespero:

Alice
-Mas o que você pretende fazer, João? Não podes cuidar da menina em casa e o pé dela está solidamente preso.

João
-Eu vou amputar o pezinho dela para poder salvar a sua vida. Prefiro que ela permaneça viva com prótese a morrer em meus braços.

Narrador
Alice se desespera, mas sabe que não pode discutir com o marido que é o único que pode fazer algo pela menina naquele momento.
João preparava-se para serrar o tornozelo da filha quando entrou no recinto o irmão Gabriel.

Gabriel
-João, pelo amor de Deus, não faça essa loucura!

João
Afaste-se, Gabriel, que você não pode fazer nada. Um brutamontes aqui só irá me atrapalhar.

Narrador
Gabriel agarra o irmão pelo colarinho e o joga a um metro de distância. Então ele se agacha e agarra a enorme viga. Mas é um peso descomunal. Ele não desiste e parece que as costas vão rachar. Outros vizinhos juntam-se a ele e num esforço hercúleo conseguem levantar a viga alguns poucos centímetros, porém o suficiente para que Alice puxasse o pé da menina.
O esforço foi tão grande que Gabriel desmaia e acorda em um leito de hospital. Ele vai abrindo os olhos e vê João a seu lado.

João
Como você está meu irmão?

Gabriel
Eu apaguei... mas é minha sobrinha, como está?

João
Graças a você ele está se recuperando no quarto ao lado. Ela é tudo em minha vida e se você tivesse salvo um só fio de cabelo dela eu lhe seria imensamente grato, mas você fez muito mais do que isso, talvez tenha salvo, inclusive a vida dela. Sem você jamais conseguiríamos mover aquele entulho. Deus te fez assim, meu irmão com um propósito e não me cabe julgar como tenho feito. A ciência e o meu conhecimento de nada valeriam sem a sua forca. Obrigado.

Narrador
Quantas vezes pessoas altamente qualificadas não nos podem ajudar e nos valemos de irmãos que consideramos até mesmo inúteis.

Narrador
Dou um conselho a você:
Não julgue pela aparência
Pois nem sempre o que se vê
Mostra toda sua essência.


FIM

4 comentários:

Isaías Gresmés disse...

Josafá narra neste conto o drama da adoção, onde,com suas próprias palavras "as pessoas são escolhidas como gado". As crianças negras são renegadas mesmo e, inclusive, até pelos negros (negro preconceituoso é lamentável, falo isso como negro que sou). mas Gabriel mostrou ao irmão João a que veio. Julgar uma pessoa pela cor ou pela aparência é um erro grotesco,abominável. Preconceito dói na alma... só quem já passou por isso sabe o que eu estou afirmando.

Obs.: Esse gabriel é um Maia? (rere)

Renata Calazans disse...

O tema abordado é realmente muito interessante!A questão do preconceito racial, o qual ainda é bastante vigente, mesmo num país com tamanha pluralidade cultural e racial (se é que cabe aqui este termo tão antiquado)!Além da gravidez indesejada,que resulta num delicadíssimo processo de adoção...
Parabéns pelo conto!

P.S.:"Seria melhor um aborto
Do que aguardar adoção."
Seria uma apologia ao aborto?

Unknown disse...

Excelente blog meu caro, parabéns.

Unknown disse...

Me indentifiquei com o seu estilo, não é um estilo vazio como o da maioria. Eu faço poesia mas nem gosto muito de poesia, mas das suas gostei, parabéns mesmo.

www.sentimentocritico.blogger.com.br