domingo, 24 de agosto de 2008

O melhor Amigo

Narrador
Trinta e um de dezembro. É o último dia do ano e o País está em festa. As casas daquele bairro de classe média exibem suas alegres decorações de Fim de Ano. Luzes multicoloridas piscando, muita comida, música alta e excessos.

Narrador
Uma imensa chuva de papel
Desaba dos arranha-céus
Descendo suave e leve
Assim como flocos de neve
Pousando com suavidade
Pelas ruas da cidade.
Nas churrasqueiras fumaça,
O cheiro de carne, as taças
Beijando-se em muitos Tim-Tins
Em uma festança sem fim.
Nos escritórios, nos bares,
Nas ruas, nas bocas, nos lares
Esse deveria ser o dia
Da mentira e hipocrisia,
Dia do beijo de Judas
E das ofensas caladas, mudas.
Se um milagre acontecesse,
Meu Deus, se você morresse
Seria um remédio amargo,
Mas eu subiria de cargo,
Apesar da imensa agonia
E da falta que você faria.

O homem que aperta tua mão
Que te chama de meu irmão
E se diz teu fiel escudeiro
Na verdade só pensa em dinheiro.
Você pra ele é um espinho,
É uma pedra no caminho
A impedir-lhe a carreira.
Ele quer a tua cadeira
O seu crachá de chefe
Pois você não passa de blefe,
Um cara estúpido e fraco
Que subiu por ser puxa-saco.

Narrador
Para Valério é apenas mais um dia de tristeza e solidão. Ele era um menino de dez anos que vivia pelas ruas. Nasceu em uma comunidade carente onde morava com oito irmãos em um barraco miserável de três metros quadrados. Eles pouco ficavam em casa. Desciam para as ruas bem cuidadas do bairro a fim de pedir esmolas enquanto a mãe ficava vigiando atenta em uma calçada sempre com uma garrafa de cachaça por perto. Os irmãos de Valério eram bem diferentes dele. Eram ousados, viviam a cheirar cola em plena rua e praticavam pequenos furtos com a complacência da mãe. Mas e o pai das crianças? Na verdade eram quatro pais que nem mesmo a infeliz da mãe conhecia.

Valério
Eu me lembro! Eu me lembro!
Era a véspera do ano novo,
Trinta e um de dezembro
Ia começar tudo de novo...

Nos mercados um burburinho
Com suas filas intermináveis.
Um fuzuê de gente e carrinhos
Em um ir e vir inenarrável.

Pernil, presunto e panetone,
Champanhe barato e cerveja.
Muita fartura pra noite insone,
Doces decorados com cerejas.

Um fogo sobe incandescente
E como cometa o céu risca
Caindo como estrelas cadentes
Sobre as casas e seus pisca-piscas.

Nas belas mansões avarandadas
Crianças em seus doces folguedos
Desmancham-se em frenéticas risadas
A curtir os seus novos brinquedos.

Me entristece toda essa alegria,
Sinto-me só nessa multidão.
Toda essa festa e essa euforia
Toca lá fundo em meu coração.

Narrador
Pobre criança. Vivia só, jogada pelas ruas. Não tinha o calor de um lar e nem sequer o convívio com uma família, já que se afastara, inclusive, dos irmãos a fim de preservar a própria vida.
Ela ficava perambulando pelo bairro de classe média e via as belas casas ornamentadas para as festas de fim de ano. Fartas mesas servidas nas varandas e muita comida desperdiçada. Seu estomago roncava de fome ao ver aquela cena.
Havia um senhor chamado Salvador, que morava com a mulher e um casal de filhos numa ampla casa de um condomínio. Era graças a ele que Valério tinha autorização para entrar ali. Ele era o único que ajudava o garoto, pois o conheceu quando andava de carro pelas proximidades e ficou impressionado com o olhar bondoso do menino. Desde então, três vezes por semana Valério vai a sua casa pegar provisões.
E não eram restos de comida, não. Ele preparava belas refeições em quentinhas limpas para o moleque.
Pelo gosto dele Valério entraria na casa para comer, mas a mulher e os filhos não permitiam. Alegavam que essa gente pode ser perigosa ou transmitir doenças. Por eles o garoto nem entraria ali, mas o velho era inflexível nesse ponto e advertia a todos que se criassem problemas com o menino iriam se arrepender.

Valério
O de casa, por favor, me atenda
Venho aqui pedir a sua ajuda
Eu preciso vencer essa contenda
Por favor, meu amigo, me acuda.

Narrador
O velho Salvador preparou uma refeição especial para o menino. Uma generosa quantidade de salada de bacalhau, frutas diversas, frango assado e muitas outras iguarias. Entregou em uma bolsa para o pequeno andarilho junto com uma lata de refrigerante. Que pena ele sentia daquela criança e como lamentava não poder ajudá-la mais, entretanto ele tinha família e precisava preservá-la, motivo pelo qual cedia contrariado.
Ele deu também um joguinho eletrônico que Valério adorou. Isso iria ajudar o menino a afastar o tédio e a tristeza.
Eram quase 22h00 e Valério precisava se apressar. Mesmo para ele, criado pelas ruas, era perigoso ficar perambulando até muito tarde, principalmente em um dia atípico como aquele.
Ele caminhou por quase uma hora até chegar à calçada de uma quitanda abandonada onde pernoitava. Havia outros moradores disputando aquela marquise e ele precisava marcar presença ou acabaria perdendo a vaga. Eram comuns os casos de espancamentos e estupros, mas parece que Deus tinha um carinho bem especial por Valério, pois nada de pior ainda havia acontecido com ele.
Ele sentou-se encostado à parede. Estranhamente havia poucas pessoas ali naquela noite. Certamente deveriam ter decidido ficar pela praia, já que estava uma noite excepcionalmente quente. Valério ficou olhando os fogos, cada vez mais freqüentes a pipocar no céu. Era um lindo espetáculo. Ele pegou a ceia e começou a mordiscar algumas guloseimas. O brilho dos fogos refletia-se em seus olhos negros e ele sentiu uma tristeza imensa.
Estava quase chorando, quando aproximou-se dele um garoto, mais ou menos da mesma idade, e sentou-se ao seu lado, calado. Valério puxou assunto:

Valério
Você não tem ninguém?
Está sozinho também?
Seja bem-vindo, amigo,
Sente-se aqui comigo
Nessa fria calçada
Para ver de arquibancada
Essa cidade que brilha
Com mil fogos. Maravilha!
São foguetes. São rojões
Em ruidosas explosões
A música sobe do asfalto
Chega no vento aqui no alto
A brindar o novo ano
E nós aqui, sem ter planos,
Lixo da sociedade
Nas sarjetas da cidade,
Somos só dois meninos
A lamentar o destino.

Narrador
O menino sorri e confirma com a cabeça. Também vagava só e triste na madrugada fria. Ele toma lugar ao lado de Valério para apreciar aquele espetáculo magnífico no alto do morro que permite um perfeito vislumbre de toda aquela imensa cidade. Os fogos explodiam e o núcleo fragmentava-se lançando fragmentos coloridos em todas as direções. Expandiam-se de tal forma que passava a sensação de que iria atingi-los. Uma ilusão de ótica fantástica. Um espetáculo pirotécnico grandioso por uma noite de euforia. Para muitos uma espécie de redenção e pretexto para esquecer as agruras dos trezentos e sessenta e quatro dias antecedentes.
Os dois ficam ali, encantados, os olhos fixos no céu enquanto Valério, instintivamente ía tirando guloseimas da bolsa e levando à boca. Só então ele se dá conta de que o visitante não traz nenhum alforje consigo. Ele então fala para o novo amigo:

Valério
Quer comer alguma coisa. Tenho rabanadas, bolinhos de bacalhau, refrigerante e outras delícias que, se quiser, divido com você.

Menino
Desculpe amiguinho, mas não posso aceitar. Vejo que você é tão carente como eu e essa comida é preciosa para você. Comove-me tamanha bondade, mas devo recusar.

Valério
Por favor aceite. Tem bastante e amanhã Deus proverá mais. Pelo menos por essa noite vamos fazer uma ceia decente, só nós dois. Façamos de contas que somos uma família de duas pessoas.

Menino
Valério, nunca vi em todo esse mundo alguém com um coração tão imaculado quanto o teu. Nem as agruras da vida tiraram de tua boca um só murmúrio contra os desígnios do Senhor. Tu terás o teu galardão.

Menino
Vê toda essa riqueza
E desmedida alegria?
É tudo miragem; é falso
Pois o mundo é cadafalso
E estão sobre um alçapão
Que se abre para um vão...
A corda se aperta. Acorda!
O gatilho dispara. A horda
Aguarda faminta no fundo
De um abismo profundo.

Narrador
Valério teve um sobressalto ao constatar que aquele menino, até então estranho, sabia o seu nome e proferia sábias palavras. Não poderia ser um menino qualquer. Era alguém, talvez um anjo, que estava ali a sua frente.
Valério fez menção de falar, mas o menino delicadamente tocou os seus lábios. Fez-se um repentino silêncio absoluto. O foguetório, a música, o burburinho e até mesmo a paisagem desapareceram. Valério só via o menino a sua frente que brilhava como se estivesse pintado com tinta fosforescente. Aquele menino era o próprio DEUS. Não em corpo, mas em essência. Era uma alma preciosa a ser resgatada e aquele anjo foi enviado para buscá-lo.

Deus
Fecha teus olhos. Quando os abrires já não estarás mais aqui, nesse mundo de miséria, mentira e podridão. Tu serás também um anjo a procurar por boas almas a serem trazidas ao aprisco.

Deus
Teu corpo é pequeno
E mesmo em tenra idade
Teu coração é pleno
De amor e fraternidade.

Venha pra junto de mim
Tu ficarás ao meu lado
E serás um querubim,
Um lindo anjo alado.

Tu serás um guardião
A buscar na noite escura
Seres de bom coração
Outras boas criaturas.

Narrador
É Valério abriu os olhos e viu o Reino dos Céus em todo o seu esplendor. O Leão de Judá em seu trono magnífico, ladeado por anjos que de suas liras tiravam cantos de louvor. A sensação de libertação, o coração aquecido e a contemplação de toda aquela verdadeira alegria não podem ser descritas com palavras. Não era aquela comemoração passageira de uma vida perdulária. Nem as músicas profanas e sem conteúdo que há pouco ele ouvia na favela. Era uma música de louvor maravilhosa. A visão de Deus é de uma magnitude incomensurável. Um ser belíssimo, puro, magnificente em um trono suntuoso, cravejado de pedras preciosas. Os corações dos anjos, puros, isentos de quaisquer pecados, sem ódio, ambição, inveja ou qualquer traço de maledicência. Ali Valério iria habitar e receber seu galardão. Lá no alto do morro ficou o corpo esquálido de um menino faminto, cuja morte só foi constatada dois dias depois. Quem liga para indigentes? Que diferença faz se estão mortos ou dormindo? Pelo menos não poluem a cidade com suas visões indesejáveis. Foi levado numa maca fria para o necrotério, mas é apenas um corpo. A alma, essa sim é imortal e foi salva e jamais será profanada.


FIM

Um comentário:

Isaías Gresmés disse...

Maravilhoso! Estupendo! Magnífico! Amigo Josafá, você criou um conto que nos mostra a verdadeira essência do natal e ano novo: momentos de reflexão, de se ligar a Deus e seu filho. Mostrou também a falta de essência por que passa a humanidade, pois nessa época as pessoas estão precupadas, somente, em entupir seus buchos com guloseimas. Amor ao próximo? O que é isso? Um ser humano de valor se revela em suas atitudes; pode ser qualquer um, até um menino sujo, largado nas ruas...