domingo, 7 de setembro de 2008

Amanhecer

*
Está dormindo a aldeia
Quando os primeiros albores
Do Sol lança suas cores
E o horizonte incendeia.
Na praia a alva areia
Forma dunas caprichosas
E a brisa deliciosa
Traz cheiro de maresia
E vai nascendo meu dia
Como um botão de rosa.

Das ondas a branca crista
Em um debrum delicado
Parece que foi bordado
Por competente artista.
E a água verde-ametista
De aparência brumosa
Vem numa onda vadia
E aos meus pés acaricia
Enquanto nasce o meu dia
Como um botão de rosa.

O albatroz já revoa
Cavalga nas asas do vento
Vai procurar alimento
Com a primeira canoa.
Um pássaro triste entoa
Com sua voz maviosa
A primeira melodia
Para puxar cantoria
Saudando o nascer do dia
Como um botão de rosa.

As aves singram o espaço
O ar aos poucos se aquece
E enquanto o dia amanhece
Sobe do chão um mormaço
E a vida segue em compasso
Numa rota caprichosa...
Sempre na mesma harmonia
Na mesma coreografia
Assim nasceu o meu dia
Como um botão de rosa.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Nordestinidades

*
Lá no sertão brasileiro
Onde o chão é um braseiro
A seca cruel castiga
E ao sertanejo obriga
A deixar torrão natal

Na mala só a coragem
Eles trazem pra viagem
E a força do braço forte
Para vir tentar sua sorte
Nos anúncios de jornal.

Nessa desgraça infame
Pendurados nos andaimes
Eles trazem na memória
Muitos versos, muita história
E uma viola tangente

Que chora de madrugada
Com saudades da amada
Do alazão que foi
Junto com a vaca e o boi
Naquele Sol inclemente.

No último pau de arara
Saiu uma jóia rara
Daquele lugar infecundo
Pois lugar pior no mundo
Não tinha no meu Brasil.

Raimundo canta bonito
Esse meu povo aflito
Destilando em poesia
Com toda graça e magia
As nossas belezas mil.

Tem também Tom Cavalcanti
Esse pequeno gigante,
Codinome Cana Brava
Que na TV me encantava
Com seu jeito de falar.

Me lembro do Sai de Baixo
Que mostrava o escracho
Com a trupe da alegria:
Falabella e companhia
E o Porteiro Ribamar.

Ao Renato Aragão
O querido Trapalhão
Que mesmo estando sozinho
Merece nosso carinho
Eu quero homenagear.

Quando criança eu já ia
Ao cinema e não perdia
Os filmes desses palhaços.
Para os quatro um abraço
Eu quero agora mandar

Pois Mussum e Zacarias
Também eram da folia
Com seu humor pastelão
E Deus estendeu a mão
E eles estão num bom lugar.

Chico Anísio é humorista
Um valoroso artista
Que com a força da mente
Alegra a vida da gente
Pois é um mestre do humor.

Eu fico extasiado
Com os personagens criados
Com tamanha competência
E tanta graça é ciência
Também têm grande valor.

O Falcão do meu Nordeste
Com as curiosas vestes
Cobertas de badulaques
Nunca precisou de claque
Pra nos trazer alegria.

De piadas repentista
Esse querido artista
Tem a palavra viva
Que voa na sua saliva
Nos versos de sua autoria,

Com a nasalada voz
Também está entre nós
José, o Roque Santeiro
Que veio de Juazeiro
Para pegar a Porcina.

Ele muito nos faz falta
Com o Sinhozinho Malta
(Fantástico Lima Duarte)
Pois juntos mostravam arte
Com a viúva libertina

De Sobral é Belchior
E eu vou dizer melhor:
A sua voz nos encanta
E quando essa ave canta
Parece uma patativa...

Do Ceará esse filho
Veio trazer o seu brilho
Para esse Brasil inteiro
Pois do povo brasileiro
Ele é uma lenda viva.

Elba é um Banho de Cheiro
E se canta com esmero
Canora como sereia
O palco todo incendeia
Com seu lume divinal

E eu digo pra você
Ela faz um balancê
Que me lembra outra dama
Que também tem boa fama
E o nome dela é Gal.

O sobrenome é Costa
E essa mulher também gosta
De endoidar o seu oposto
Com um sorriso no rosto
E a voz de um rouxinol.

Um outro belo trabalho
Do querido Zé Ramalho
Com sua voz envolvente
Tomando conta da gente
É como um raio de Sol

Sua canção me acalma
E traz paz pra minha alma
Que se enleva em seu som
Que parece um sonho bom
Do qual não quero acordar.

Dorival e Nana Caimi,
Um outro casal sublime
Que com Danilo faz trio
Cantando a canção com brio
Nos dão asas pra voar.

Na batida do baião
O fole do Gonzagão
Só perde pra Januário
Que já se tornou lendário
Por esse imenso País.

Quem não sabe, digo agora
Bem depressa, sem demora,
Januário é sanfoneiro
Dos grandes foi o primeiro
E ele é pai do Luiz.

Vital Faria, Xangai
Elomar e a lista vai
Caminhando pro infinito
Pois todo esse povo bonito
Eu não vou poder cantar.

E tantos há pra citar
Que não dá pra mencionar
Nos versos dessa poesia
E mesmo sendo heresia
Agora vou ter que parar.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Lampião o valente e a volante

*
Amigos tomem assento
Nessa roda de cordel
Que vou cantar um lamento
Um pouco de mel e fel.

Vou falar de um brasileiro
Em Vila Bela nascido
Que tornou-se cangaceiro
Arrojado e destemido.

Foi há cerca de cem anos
Na Fazenda Ingazeira
Isso salvo algum engano
Me avisem se é besteira.

Veio ao mundo um menino
De José e de Maria
Foi chamado Virgolino
Oito irmãos ele teria.

Era um garoto comum
Tinha uma boa família
E assim como qualquer um
Foi seguindo a sua trilha.

Cedo parou de estudar.
Pra ajudar no sustento
Foi para o pasto aboiar
Pra garantir o alimento.

Foram Antonio e Levino
Dois de seus oito manos
Que mudaram o destino
E criaram novos planos.

Envolveram-se em brigas
Por marcações de terrenos
E muitas outras intrigas
Outros conflitos pequenos.

Travavam antiga guerra
Que a todos envolvia.
Eles lutavam por terras
E uma grande rixa havia.

Lampião foi envolvido
Por essa luta de classes
E enfim virou um bandido
Nesse terrível impasse.

Um seu José Saturnino
Com eles vivia às turras
E o pai de Virgolino
Morreu nessa guerra burra.

O delegado Batista,
Junto com um imediato
De forma meio alarmista
Foi lá desvendar um fato.

Mas sendo bem trapalhão
Matou o José Ferreira
Em desastrada ação
Fazendo grande besteira.

Pra resolver o dilema
O infeliz delegado
Criou um maior problema
Matando um pobre coitado.

Virgolino transtornado,
Resolveu buscar vingança.
A açao do delegado
Foi um grande lambança.

Uma tropa existia
Sinhô era o comandante
E Virgolino iria
Entrar nela nesse instante.

Sinhô passa o comando
Para o amigo Lampião
Que vai liderar o bando
Com uma implacável mão.

Ele jamais se cansa
Não se esquece do pai morto.
E ao buscar a vingança
Enreda em caminho torto.

Mas também há ambição
E há sede de poder
Que guiam a sua mão
Transformando o seu ser.

Virou um homem temido
Lá pras bandas do Nordeste
Vivia sempre escondido
Num sofrimento da peste.

Chamado por Padim Ciço
A Juazeiro do Norte
Pra valoroso serviço
Pensou em mudar sua sorte

Levou uma reprimenda
Pelo seu mau proceder
E teve por encomenda
No interior combater.

A Coluna Prestes era
Causa de muitos transtornos
Uma medonha quimera
No Nordeste e entorno.

Esse forte movimento
Político-militar
Era um enorme tormento
Um mal a se extirpar.

Em troca receberia
Pela colaboração
Uma total anistia
E seria Capitão.

E lá se foi Lampião
Embrenhar-se pelo mato
No cargo de Capitão
A fim de cumprir o trato.

Que na verdade era falso,
Uma mentira fajuta.
A polícia foi no encalço
O que rendeu muita luta.

Paraíba, Ceará,
Tinha também Pernambuco
Unidos para caçar
Era coisa de maluco.

Para evitar o fracasso
Enquanto estava no prumo
O nosso Rei do Cangaço
Partiu para outro rumo.

Bandeou-se pra Bahia,
Sergipe e Alagoas.
Lá teve melhores dias
Aquela área era boa.

Por lá um dia ele vem
Conhecer Maria Bonita
Maria Déia Nenén
Numa paixão infinita.

Filha de um sapateiro
A morena enfeitiçou
O temido cangaceiro
E com ele se casou.

Mais tarde, Maria Bonita,
Com Lampião por parteiro
Trouxe ao mundo Expedita
Embaixo de um imbuzeiro.

Ma a vida era dura
E o destino sombrio.
No meio da mata escura
Era bomba sem pavio.

A criança foi deixada
Com um fiel guardião
E seguiu sua jornada
O bando de Lampião.

O Benjamin Abraão,
Com carta de Padim Ciço
Teve a autorização
Assumiu o compromisso

De filmar o acampamento
Para um documentário.
Mostrando alguns momentos
Numa vida de calvário.

E ele filmou a vida
Daquela sociedade.
Suas roupas, a comida
E toda a fraternidade.

Lampião em sua roda
Desenhava o figurino.
Ele ditava a moda
Criando modelos finos.

Os chapéus, as cartucheiras
Ornados de ouro e prata
Pra vida sem eira nem beira
Para andar pela mata.

Pra que andar bem vestido?
Parece até contra-senso.
Porém isso faz sentido
Quando a respeito eu penso.

Eles tinham sua arte
E regras de convivência
Em um mundinho à parte
Com sua própria ciência.

Lampião era uma lenda
Até uma madrugada
Quando estava na fazenda
De nome Angicos chamada.

Chegou, então, a volante
Em um proceder perfeito.
Devagar e num instante
O estrago estava feito.

Tenente João Bezerra
Com o sargento Aniceto
Naquele momento encerra
A busca do desafeto.

Cuspiam fogo as metralhas
Criando imenso horror.
Não se conhece o canalha
Que foi o seu traidor.

Uns poucos tiveram sorte
E escaparam com vida.
No meio de dor e mortes
Encontraram uma saída.

Lampião foi dos primeiros
A receber um balaço.
Era o fim do cangaceiro
E era o fim do cangaço.

Lampião é degolado
Num proceder bem covarde.
O corpo é esquartejado
Pra ser exemplo mais tarde.

Maria Bonita, ferida,
Também foi sacrificada.
Ela perdeu a vida
Naquela infame cilada.

Naquele inferno de Dante,
Numa sanha assassina
Os malditos da volante
O cangaço extermina.

As cabeças arrancadas
Do bando de Lampião
Correram o mundo mostradas
Numa vil exposição,

Agora, meu bom amigo,
Eu peço sua atenção
E que reflita comigo
Em delicada questão:

Lampião não era santo,
Ao menos pelo que sei
Mas convenha, no entanto,
Que pra isso existe a lei.

O proceder da volante
Foi coisa de carniceiro.
Atitude revoltante
Pior que a dos cangaceiros.

FIM

domingo, 24 de agosto de 2008

O melhor Amigo

Narrador
Trinta e um de dezembro. É o último dia do ano e o País está em festa. As casas daquele bairro de classe média exibem suas alegres decorações de Fim de Ano. Luzes multicoloridas piscando, muita comida, música alta e excessos.

Narrador
Uma imensa chuva de papel
Desaba dos arranha-céus
Descendo suave e leve
Assim como flocos de neve
Pousando com suavidade
Pelas ruas da cidade.
Nas churrasqueiras fumaça,
O cheiro de carne, as taças
Beijando-se em muitos Tim-Tins
Em uma festança sem fim.
Nos escritórios, nos bares,
Nas ruas, nas bocas, nos lares
Esse deveria ser o dia
Da mentira e hipocrisia,
Dia do beijo de Judas
E das ofensas caladas, mudas.
Se um milagre acontecesse,
Meu Deus, se você morresse
Seria um remédio amargo,
Mas eu subiria de cargo,
Apesar da imensa agonia
E da falta que você faria.

O homem que aperta tua mão
Que te chama de meu irmão
E se diz teu fiel escudeiro
Na verdade só pensa em dinheiro.
Você pra ele é um espinho,
É uma pedra no caminho
A impedir-lhe a carreira.
Ele quer a tua cadeira
O seu crachá de chefe
Pois você não passa de blefe,
Um cara estúpido e fraco
Que subiu por ser puxa-saco.

Narrador
Para Valério é apenas mais um dia de tristeza e solidão. Ele era um menino de dez anos que vivia pelas ruas. Nasceu em uma comunidade carente onde morava com oito irmãos em um barraco miserável de três metros quadrados. Eles pouco ficavam em casa. Desciam para as ruas bem cuidadas do bairro a fim de pedir esmolas enquanto a mãe ficava vigiando atenta em uma calçada sempre com uma garrafa de cachaça por perto. Os irmãos de Valério eram bem diferentes dele. Eram ousados, viviam a cheirar cola em plena rua e praticavam pequenos furtos com a complacência da mãe. Mas e o pai das crianças? Na verdade eram quatro pais que nem mesmo a infeliz da mãe conhecia.

Valério
Eu me lembro! Eu me lembro!
Era a véspera do ano novo,
Trinta e um de dezembro
Ia começar tudo de novo...

Nos mercados um burburinho
Com suas filas intermináveis.
Um fuzuê de gente e carrinhos
Em um ir e vir inenarrável.

Pernil, presunto e panetone,
Champanhe barato e cerveja.
Muita fartura pra noite insone,
Doces decorados com cerejas.

Um fogo sobe incandescente
E como cometa o céu risca
Caindo como estrelas cadentes
Sobre as casas e seus pisca-piscas.

Nas belas mansões avarandadas
Crianças em seus doces folguedos
Desmancham-se em frenéticas risadas
A curtir os seus novos brinquedos.

Me entristece toda essa alegria,
Sinto-me só nessa multidão.
Toda essa festa e essa euforia
Toca lá fundo em meu coração.

Narrador
Pobre criança. Vivia só, jogada pelas ruas. Não tinha o calor de um lar e nem sequer o convívio com uma família, já que se afastara, inclusive, dos irmãos a fim de preservar a própria vida.
Ela ficava perambulando pelo bairro de classe média e via as belas casas ornamentadas para as festas de fim de ano. Fartas mesas servidas nas varandas e muita comida desperdiçada. Seu estomago roncava de fome ao ver aquela cena.
Havia um senhor chamado Salvador, que morava com a mulher e um casal de filhos numa ampla casa de um condomínio. Era graças a ele que Valério tinha autorização para entrar ali. Ele era o único que ajudava o garoto, pois o conheceu quando andava de carro pelas proximidades e ficou impressionado com o olhar bondoso do menino. Desde então, três vezes por semana Valério vai a sua casa pegar provisões.
E não eram restos de comida, não. Ele preparava belas refeições em quentinhas limpas para o moleque.
Pelo gosto dele Valério entraria na casa para comer, mas a mulher e os filhos não permitiam. Alegavam que essa gente pode ser perigosa ou transmitir doenças. Por eles o garoto nem entraria ali, mas o velho era inflexível nesse ponto e advertia a todos que se criassem problemas com o menino iriam se arrepender.

Valério
O de casa, por favor, me atenda
Venho aqui pedir a sua ajuda
Eu preciso vencer essa contenda
Por favor, meu amigo, me acuda.

Narrador
O velho Salvador preparou uma refeição especial para o menino. Uma generosa quantidade de salada de bacalhau, frutas diversas, frango assado e muitas outras iguarias. Entregou em uma bolsa para o pequeno andarilho junto com uma lata de refrigerante. Que pena ele sentia daquela criança e como lamentava não poder ajudá-la mais, entretanto ele tinha família e precisava preservá-la, motivo pelo qual cedia contrariado.
Ele deu também um joguinho eletrônico que Valério adorou. Isso iria ajudar o menino a afastar o tédio e a tristeza.
Eram quase 22h00 e Valério precisava se apressar. Mesmo para ele, criado pelas ruas, era perigoso ficar perambulando até muito tarde, principalmente em um dia atípico como aquele.
Ele caminhou por quase uma hora até chegar à calçada de uma quitanda abandonada onde pernoitava. Havia outros moradores disputando aquela marquise e ele precisava marcar presença ou acabaria perdendo a vaga. Eram comuns os casos de espancamentos e estupros, mas parece que Deus tinha um carinho bem especial por Valério, pois nada de pior ainda havia acontecido com ele.
Ele sentou-se encostado à parede. Estranhamente havia poucas pessoas ali naquela noite. Certamente deveriam ter decidido ficar pela praia, já que estava uma noite excepcionalmente quente. Valério ficou olhando os fogos, cada vez mais freqüentes a pipocar no céu. Era um lindo espetáculo. Ele pegou a ceia e começou a mordiscar algumas guloseimas. O brilho dos fogos refletia-se em seus olhos negros e ele sentiu uma tristeza imensa.
Estava quase chorando, quando aproximou-se dele um garoto, mais ou menos da mesma idade, e sentou-se ao seu lado, calado. Valério puxou assunto:

Valério
Você não tem ninguém?
Está sozinho também?
Seja bem-vindo, amigo,
Sente-se aqui comigo
Nessa fria calçada
Para ver de arquibancada
Essa cidade que brilha
Com mil fogos. Maravilha!
São foguetes. São rojões
Em ruidosas explosões
A música sobe do asfalto
Chega no vento aqui no alto
A brindar o novo ano
E nós aqui, sem ter planos,
Lixo da sociedade
Nas sarjetas da cidade,
Somos só dois meninos
A lamentar o destino.

Narrador
O menino sorri e confirma com a cabeça. Também vagava só e triste na madrugada fria. Ele toma lugar ao lado de Valério para apreciar aquele espetáculo magnífico no alto do morro que permite um perfeito vislumbre de toda aquela imensa cidade. Os fogos explodiam e o núcleo fragmentava-se lançando fragmentos coloridos em todas as direções. Expandiam-se de tal forma que passava a sensação de que iria atingi-los. Uma ilusão de ótica fantástica. Um espetáculo pirotécnico grandioso por uma noite de euforia. Para muitos uma espécie de redenção e pretexto para esquecer as agruras dos trezentos e sessenta e quatro dias antecedentes.
Os dois ficam ali, encantados, os olhos fixos no céu enquanto Valério, instintivamente ía tirando guloseimas da bolsa e levando à boca. Só então ele se dá conta de que o visitante não traz nenhum alforje consigo. Ele então fala para o novo amigo:

Valério
Quer comer alguma coisa. Tenho rabanadas, bolinhos de bacalhau, refrigerante e outras delícias que, se quiser, divido com você.

Menino
Desculpe amiguinho, mas não posso aceitar. Vejo que você é tão carente como eu e essa comida é preciosa para você. Comove-me tamanha bondade, mas devo recusar.

Valério
Por favor aceite. Tem bastante e amanhã Deus proverá mais. Pelo menos por essa noite vamos fazer uma ceia decente, só nós dois. Façamos de contas que somos uma família de duas pessoas.

Menino
Valério, nunca vi em todo esse mundo alguém com um coração tão imaculado quanto o teu. Nem as agruras da vida tiraram de tua boca um só murmúrio contra os desígnios do Senhor. Tu terás o teu galardão.

Menino
Vê toda essa riqueza
E desmedida alegria?
É tudo miragem; é falso
Pois o mundo é cadafalso
E estão sobre um alçapão
Que se abre para um vão...
A corda se aperta. Acorda!
O gatilho dispara. A horda
Aguarda faminta no fundo
De um abismo profundo.

Narrador
Valério teve um sobressalto ao constatar que aquele menino, até então estranho, sabia o seu nome e proferia sábias palavras. Não poderia ser um menino qualquer. Era alguém, talvez um anjo, que estava ali a sua frente.
Valério fez menção de falar, mas o menino delicadamente tocou os seus lábios. Fez-se um repentino silêncio absoluto. O foguetório, a música, o burburinho e até mesmo a paisagem desapareceram. Valério só via o menino a sua frente que brilhava como se estivesse pintado com tinta fosforescente. Aquele menino era o próprio DEUS. Não em corpo, mas em essência. Era uma alma preciosa a ser resgatada e aquele anjo foi enviado para buscá-lo.

Deus
Fecha teus olhos. Quando os abrires já não estarás mais aqui, nesse mundo de miséria, mentira e podridão. Tu serás também um anjo a procurar por boas almas a serem trazidas ao aprisco.

Deus
Teu corpo é pequeno
E mesmo em tenra idade
Teu coração é pleno
De amor e fraternidade.

Venha pra junto de mim
Tu ficarás ao meu lado
E serás um querubim,
Um lindo anjo alado.

Tu serás um guardião
A buscar na noite escura
Seres de bom coração
Outras boas criaturas.

Narrador
É Valério abriu os olhos e viu o Reino dos Céus em todo o seu esplendor. O Leão de Judá em seu trono magnífico, ladeado por anjos que de suas liras tiravam cantos de louvor. A sensação de libertação, o coração aquecido e a contemplação de toda aquela verdadeira alegria não podem ser descritas com palavras. Não era aquela comemoração passageira de uma vida perdulária. Nem as músicas profanas e sem conteúdo que há pouco ele ouvia na favela. Era uma música de louvor maravilhosa. A visão de Deus é de uma magnitude incomensurável. Um ser belíssimo, puro, magnificente em um trono suntuoso, cravejado de pedras preciosas. Os corações dos anjos, puros, isentos de quaisquer pecados, sem ódio, ambição, inveja ou qualquer traço de maledicência. Ali Valério iria habitar e receber seu galardão. Lá no alto do morro ficou o corpo esquálido de um menino faminto, cuja morte só foi constatada dois dias depois. Quem liga para indigentes? Que diferença faz se estão mortos ou dormindo? Pelo menos não poluem a cidade com suas visões indesejáveis. Foi levado numa maca fria para o necrotério, mas é apenas um corpo. A alma, essa sim é imortal e foi salva e jamais será profanada.


FIM

sábado, 16 de agosto de 2008

Gabriel

*
Narrador
Gabriel é um menino de dez anos e há oito está naquele depósito de crianças esperando uma adoção. Ele perdeu a conta de quantos amiguinhos já se foram levados para novos lares. Mas eram crianças brancas de cabelos lisos e ele não. À medida que o tempo passa mais difícil fica de sair dali.

Gabriel
Como gostaria de estar morto
Sem ter culpa nem remorsos
Muito longe desse mundo torto
E de sofrimentos até os ossos.

Um filho não é como um dejeto
Que sem valia vai para o lixo
Não! Um filho não é um objeto,
Não se faz isso nem com bicho

A mulher quando engravida
Traz ao mundo um ser humano
Chega à Terra nova vida
Não pode ficar em abandono...

Eu não pedi a ninguém pra nascer
Eu vim por um acidente apenas,
Tudo foi um momento de prazer,
Entre gemidos, promessas e pernas.

Eu me sinto um empecilho,
Foi grande pra mim o estrago,
Eles nunca me chamaram filho,
Não tive um beijo ou um afago.

Narrador
O drama de Gabriel não era um casuísmo. Todas aquelas pequenas almas tinham um história amarga de vida.
Mas ele, entre outros desafortunados, tinha uma enorme desvantagem: era um negro. Tinha um belo rosto, mas isso não fazia muita diferença. Até mesmo os casais negros o rejeitavam porque, por incrível que pareça, eles próprios têm preconceito social com relação à própria raça.
Naquela semana iria haver o almoço anual no qual receberiam a visita de pessoas interessadas em adotar uma criança. Todos se preparavam previamente para aquele dia com aulas de etiquetas para impressionar os visitantes e serem escolhidos. Era mais ou menos como nos antigos leilões de escravos. Ficavam expostos, eles examinavam, olhavam os dentes, procuravam por marcas na pele, enfim...

Gabriel
À noite às vezes penso:
Que esse mundo é imenso
Tantas famílias na esperança
De adotarem uma criança

Por que essa vida sem nexo?
Eu me pergunto perplexo.
Por que tem que ser assim
Nesse dissabor sem fim?

Eu não sou bebida amarga
Pra cuspir e dar descarga.
O que me fizeram foi abuso
Eles deveriam estar reclusos.

Eu imploro Senhor, me escuta:
Nessa minha tristeza absoluta
Que uma família me escolha
E em seu seio me recolha.

Narrador
Enfim chegou o grande dia. Muito riso, música infantil, comida em excesso. E os casais foram fazendo suas escolhas: ficaram com a Carmem, minha melhor amiga, os gêmeos Rodrigo e Thiago, Pedro o mentiroso enquanto eu e outros negros fomos sobrando. Éramos dezoito e apenas dois foram adotados. Nenhuma criança branca ficou de fora. Houve até uma espécie de sorteio para a Carmem o que foi patético.
O dia já estava terminando juntamente com minhas esperanças quando chegou um senhor negro, com uma aparência distinta acompanhado de uma senhora –provavelmente sua esposa- e olharam em volta.
Eram quarentões e pareciam boa gente. Mostraram-se decepcionados pelas poucas opções de escolha, mas queriam uma criança negra. A senhora pôs os olhos sobre mim e percebi uma mutua simpatia. Ela cutucou o marido: -aquele ali.
O homem respondeu: -Calma, Carla, há outras opções.
A mulher impacientou-se:- Eu não quero outras opções. Quero aquele ali!Após uma entrevista eles tiveram uma boa impressão de minha pessoa e o homem, que posteriormente soube chamar-se Thiago elogiou a escolha da mulher.

Gabriel
Por essa bênção, obrigado,
E por atender meus apelos
Livrando-me desse pesadelo,
Nesse rebanho de gado.

Já não suportava o castigo
De ser sempre renegado
Sendo colocado de lado
No abandono desse abrigo.

Caso houvesse outra opção
Eu escolheria estar morto,
Seria melhor um aborto
Do que aguardar adoção.

Narrador
E em uma semana, Thiago e Carmem foram buscar o moleque. Gabriel estava ansioso para conhecer uma família de verdade, diferente daquela destroçada que o abandonou ali.
Quando ele saiu daquele lugar, deu uma última olhada antes de entrar no carro de Thiago. Aliás, um belo carro. Eles viajaram por uma longa hora e a paisagem foi mudando aos poucos. Thiago morava em um bairro nobre da cidade com belas casas de classe média. Era um lindo condomínio.
Quando chegaram havia uma senhora esperando. Era uma empregada que há muito estava na família. Neusa o recebeu sorrindo e me tomou pela mão dizendo: - vamos conhecer teu irmão João.
Aquela frase soou muito estranho para Gabriel. Ele não tinha uma noção clara do que é uma família.
É como se ele tivesse nascido naquele momento e com aquela idade naquela casa.Eles subiram até um quarto no segundo andar da ampla casa. João estava brincando com um videogame e precisou ser chamado três vezes para volver a cabeça.

João
Eu disse que não carecia
Arranjar-me um irmão.
Eu gosto dessa solidão
De curtir minhas fantasias.

Mas papai é cabeça dura
E não me levou em conta
E mesmo assim me afronta
Trazendo essa criatura.

Muito prazer e até já
Que estou ocupado agora
Então pode dar o fora
E me deixa em meu lugar.

Neusa
Mas o que é isso João? Seu pai ficaria muito triste se assistisse essa cena. Ele se preocupa com você e acha que precisa de outra criança nessa casa para fazer-lhe companhia. Agora comporte-se como um Maia e fale direito com o Gabriel.

Narrador
Na verdade João era um bom menino, porém extremamente mimado e julgava que o mundo girava ao seu redor. Ele via em Gabriel uma ameaça como alguém que iria dividir os carinhos antes exclusivos dos seus pais.
Mas ele aceitou a presença de Gabriel e eles começaram a conversar. Havia regras a serem seguidas: os brinquedos, por exemplo, eram intocáveis. Ele só poderia brincar com eles na presença e com o consentimento de Gabriel. E foram muitos outros pode isso e não pode aquilo que Gabriel ficou tonto.
Mas o tempo passou e eles até que se davam bem. Mas Gabriel sempre achou que havia alguma coisa no ar. Uma espécie de preconceito. Ele nunca se achou um filho de verdade e notava pequenas diferenças de tratamento entre ele e João, filho biológico do casal. Entretanto ele foi crescendo e chegou à conclusão que isso era aceitável, desde que bem administrado.
Eles cresceram e estudaram juntos no mesmo colégio. João era um ótimo aluno, mas Gabriel tinha muitas dificuldades nos estudos. Ele gostava mesmo de praticar esportes. Matriculou-se na academia que havia no condomínio onde morava e passava boa parte do tempo livre lá, levantando pesos.

João
Eu vou dizer algo profético:
Muitas vezes eu me envergonho
Como um horrível sonho
E eu acho você patético.

Você passa metade do dia
Suando às voltas com pesos
E isso provoca um desprezo
Pois acho uma coisa vazia.

Tanta massa muscular pra que?
Pra arranjar um subemprego?
Mais parece presente de grego
Mas eu acho que você não vê.

Narrador
Havia retratos de João nas paredes da sala e em outros cômodos, além de diversos pôsteres. De Gabriel havia pouquíssimas fotos e se tivessem que escolher um dos dois sob qualquer hipótese, Gabriel era sempre delegado à segunda instância.
Eles tornaram-se adultos. João formou-se em medicina e com apenas 34 anos era um renomado cirurgião. Gabriel tornou-se um famoso atleta na modalidade de levantamento de pesos. Era um verdadeiro armário com uma força descomunal, capaz de tirar do chão centenas de quilos.
João casou-se com Alice, uma jovem colega de faculdade e tinha uma filhinha linda. A esposa era branca e a menina nasceu uma mulata que era um encanto. Tinha cinco anos de idade.
Certo dia Gabriel estava na academia próximo à casa dos pais, onde ainda morava e João descansava em casa com a mulher e a filha. Era um sábado tranqüilo quando houve um deslizamento de terra nos fundos da casa de João e uma das paredes cedeu, soltando uma pesada viga de concreto que sustentava o teto, caindo tudo em cima da filha deles. Foi uma coisa horrorosa. João correu para o quarto da menina e, de pronto, achou que ela estava morta. Não haveria como escapar de um acidente daqueles, ou haveria?
Na verdade, miraculosamente, ele viu a filha encostada ao que sobrara de uma parede sem nenhum ferimento sério aparente. Ele correu para pegar a menina mas percebeu que o pé estava preso sob a enorme viga e, para completar, a filha parecia estar entrando em estado de choque. Ele precisava fazer algo com urgência. A mulher chegou logo atrás, desesperada logo em seguida alguns vizinhos que ouviram o enorme barulho. Todos tentavam em vão retirar a viga de cima da pequena, mas ela simplesmente não se movia. João pediu para a mulher pegar seus petrechos médicos porque ele precisava levar a filha imediatamente para o hospital antes que fosse tarde demais.
A mulher Alice entrou em desespero:

Alice
-Mas o que você pretende fazer, João? Não podes cuidar da menina em casa e o pé dela está solidamente preso.

João
-Eu vou amputar o pezinho dela para poder salvar a sua vida. Prefiro que ela permaneça viva com prótese a morrer em meus braços.

Narrador
Alice se desespera, mas sabe que não pode discutir com o marido que é o único que pode fazer algo pela menina naquele momento.
João preparava-se para serrar o tornozelo da filha quando entrou no recinto o irmão Gabriel.

Gabriel
-João, pelo amor de Deus, não faça essa loucura!

João
Afaste-se, Gabriel, que você não pode fazer nada. Um brutamontes aqui só irá me atrapalhar.

Narrador
Gabriel agarra o irmão pelo colarinho e o joga a um metro de distância. Então ele se agacha e agarra a enorme viga. Mas é um peso descomunal. Ele não desiste e parece que as costas vão rachar. Outros vizinhos juntam-se a ele e num esforço hercúleo conseguem levantar a viga alguns poucos centímetros, porém o suficiente para que Alice puxasse o pé da menina.
O esforço foi tão grande que Gabriel desmaia e acorda em um leito de hospital. Ele vai abrindo os olhos e vê João a seu lado.

João
Como você está meu irmão?

Gabriel
Eu apaguei... mas é minha sobrinha, como está?

João
Graças a você ele está se recuperando no quarto ao lado. Ela é tudo em minha vida e se você tivesse salvo um só fio de cabelo dela eu lhe seria imensamente grato, mas você fez muito mais do que isso, talvez tenha salvo, inclusive a vida dela. Sem você jamais conseguiríamos mover aquele entulho. Deus te fez assim, meu irmão com um propósito e não me cabe julgar como tenho feito. A ciência e o meu conhecimento de nada valeriam sem a sua forca. Obrigado.

Narrador
Quantas vezes pessoas altamente qualificadas não nos podem ajudar e nos valemos de irmãos que consideramos até mesmo inúteis.

Narrador
Dou um conselho a você:
Não julgue pela aparência
Pois nem sempre o que se vê
Mostra toda sua essência.


FIM

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O Burro, o Louro e o Cachorro

Narrador
Era uma enorme fazenda a Coice de Mula. O seu proprietário era um sisudo coronel. Não porque pertencesse às Forças Armadas ou algo que o valha, mas porque era costume chamar-se naquela época e lugar por essa denominação os grandes latifundiários.
Esse fazendeiro tinha um burro que era utilizado no transporte de mercadoria, principalmente provisões. Era um burro metido a besta. Pirracento como ele só e cheio de vontades. Mas era extremamente útil e trabalhador. Um certo dia, porém (sempre há um certo dia...) o cavalo do fazendeiro adoeceu. Era o animal usado pra puxar o arado na plantação da Coice de Mula.
Não havia outro animal para colocar no lugar, pois o coronel não iria pôr um puro sangue pra puxar arado.
Então ele pensou: quem não tem cão não caça, mas eu tenho o burro. Chegou à estrebaria e falou:

Fazendeiro
Vamos lá, burro danado,
Acabou-se a boa vida.
Tu vais puxar o arado
Cuidar da nossa comida.

O burro pensou com seus botões -embora burros não tenham botões: -Mas não vou mesmo!

Burro
Salta de banda o ‘do bigode’,
Que não carrego cangalha
Procura outro que te valha
Que comigo tu não podes.

Não sou puxador de arado,
Sou do setor de transportes
Por que sou bastante forte,
Te vira pra outros lados.

E empacou. O fazendeiro fez o impossível e o infeliz não arredou pé. O coronel suava a cântaros com o danado.

Coronel
Burro, burro pirracento
Não faz com que me zangue
Que eu te afogo no mangue,
Seu animal fedorento!

Se mexe safado, anda!
Ou vou te dar uma sova
Para te dar uma prova
Do macho que aqui manda.

Vou te cortar esse rabo
Com minha afiada faca.
Vou te arrancar uma lasca
Por que tô ficando brabo!

Narrador
Nada. Era hilário de se ver o pobre do coronel às turras com o burro.
O homem então desistiu, mas tomou uma decisão: aposentou o burro teimoso.
Botou o bicho porteira a fora e jurou pra si mesmo que o assaria na brasa se ele retornasse.
O burro foi para um casebre perto dali, numa terra que não tinha dono porque nada nela vingava. Chegando lá encontrou um louro e um cachorro conversando.
Ele achou uma visão insólita e perguntou o que eles faziam ali. Ficou surpreso ao saber que eles também haviam sido ‘dispensados’ pelos seus donos.

Louro
O coronel ficou zangado
Por que contei pra Maria
Que o seu marido vivia
Pulando pro outro lado.

Atrás de fogosa cabocla
Na fazendo Boi Bumbá.
Todo dia ele ia pra lá
Pra uma aventura louca.

Um dia fiquei com pena
Da minha antiga patroa
Que julgava que era boa
E dedurei a morena.

Foi um enorme escarcéu,
A porca torceu o rabo,
A mulher queria dar cabo
Do infeliz do coronel.

Cachorro
O cachorro, então falou: -Pois é, o coronel pediu perdão que acabou sendo aceito pela mulher. Na mesma noite já estavam de chamego. Concluíram que o louro era um traidor e jogaram-no pela janela.

Burro
E qual que tua história, amigo peludo?

Cachorro
Eu cometi a heresia de ficar velho e um lobo matou um dos cordeiros do meu dono. Então ele comprou outro cão mais novo e expulsou-me.

Cachorro
Eu era um cachorro forte,
Guardava toda a fazenda,
Tornei-me mesmo uma lenda
Cantada de Sul a Norte.

Meu dono era orgulhoso
De ter cão tão valente,
Mostrava a toda gente
O seu belo cão famoso.

Cuidava de ovelhas, do gado,
Da casa era o fiel guardião
Não existia um outro cão,
Mais valente e abnegado.

O tempo tudo consome.
Enfim cheguei à velhice,
Então o coronel me disse
Pega teu rumo e some!

Sem nenhum sinal de afeto
Jogou-me sem algibeira
Pra fora de sua porteira
Como se eu fosse um objeto.

Narrador
Então os três se uniram e cantaram uma antiga canção popular daquelas paragens:

Burro, Louro e Cachorro
Me diga por onde andas?
Me diga quais são as bandas?
Me diga quem é que manda?
Me diga quem te comanda?

Andas jogado no mundo,
Doente, tristonho, imundo,
Com um desgosto profundo
Como pobre moribundo.

Se você não for perfeito,
Fique certo que o sujeito
Meu amigo não tem jeito
Perde todo o respeito.

Teu passado é amargura,
Teu presente é negrura,
O futuro é vala impura
A vida e mata escura.

Narrador
Eles convivem naquele lugar por muito tempo apoiando-se mutuamente. Até que um dia um fazendeiro que havia comprado aquelas terras os encontra durante uma inspeção. É Leonardo, um homem bom e justo que adora animais. Ele entra no casebre com dois belos cães de caça e de pronto simpatiza com aquelas singelas criaturas. Ele fica penalizado ao vê-los tão maltratados e leva-os para a casa da fazenda.

Leonardo
Nunca mais sentirão frio
Fome também, jamais,
Pois eu amo os animais
Então terão meu auxilio.

O papagaio falador
Irá afastar o meu tédio
O cão será um remédio
Como um belo treinador.

Será um enorme ganho
Para meus cães de raça
Vai mostrar como se caça
E como cuidar do rebanho.

E esse burro tão turrão
Vai cuidar dos mantimentos
E vai buscar alimentos
Lá no armazém do Adão.

Vou plantar um milharal
E fazer desse roçado
Imenso mar esverdeado
Como nunca vi igual.

Narrador
E assim foi feito. O cão ensinou os jovens animais a caçar, cuidar do gado, guardar a casa. O papagaio quebrava a monotonia do fazendeiro que ainda era um solteirão. A fazenda prosperou e os três serviram o fazendeiro até o fim da vida não como animais, mas como amigos.

FIM

A Barata Branca

Narrador
As baratas trocam de pele para poder crescer. É um fenômeno natural e nessa fase são chamadas de noivas ou albinas.
Foi exatamente o que aconteceu com a jovem Kika. Ela era uma baratinha linda da sua raça, pois como todos sabem, beleza depende do ponto de vista e a julgar pelos suspiros provocados nos jovens das redondezas ela seria muito disputada.
Mas quando trocavam de pele elas ficavam brancas e isso era considerado um fator depreciativo, pois aqueles insetos não apreciavam nada ‘diferente’ e só gostavam de baratas marrons semelhantes a eles.
Normalmente o período em que ficam brancas é curto, mas Kika já estava no isolamento do quarto há muito tempo e tanto ela quanto a família Baratoso estavam ficando preocupados.

Papai Baratoso
Que coisa mais tacanha
Essa menina desbotada
Seria até engraçada
Não fosse tão estranha.

É uma coisa caricata
Uma coisa cor de leite
Parece até um enfeite
De uma feira barata.

É um enorme empecilho
Manter sobre o mesmo teto
Esse estranho inseto
Que dá até trocadilho.

Mamãe Baratoso
Marido precisamos ser justos e ajudar nossa filha de todas as formas. Nós vivemos e sociedade e nossa filha faz parte dela e não é a primeira vez que isso acontece. É um problema que atinge muitas baratas e todas elas foram reintegradas na sociedade.

Mamãe Baratoso
Baratoso eu não admito
Que justo você tripudie.
Faz com que eu repudie.
Teu proceder esquisito.

Ela não é barata de rua
Nem é qualquer andarilha
Ela é uma ótima filha
Tanto minha quanto tua.

Cuidado com o que dizes
Certas coisas não perdôo
E eu muito me magôo
Com esses teus deslizes.

O exemplo vem de casa
E é o alicerce do porvir
Pra quando a Kika sair
De baixo de nossas asasl

Narrador
O velho Baratoso logo caiu em si e arrependeu-se sinceramente de ter dito aquelas besteiras impensadas. Ainda bem que a filha não ouviu ou ficaria imensamente magoada. Precisamos vigiar nossas bocas para não nos tornarmos escravos de nossas palavras.

Papai Baratoso
Desculpe-me meu amor. É verdade. Nossa menina é tão boa e merece ser feliz. Amanhã mesmo nos reuniremos para traçarmos planos de modo que nossa princesa tenha um bom futuro.

Narrador
No dia seguinte a família se reuniu. Os pais de Kika e seus 85 irmãos. A menina falou em primeiro lugar.

Kika
Que honra é essa família,
Tenho pais encantadores
Meus irmãos são uns amores
E sou uma grata filha.

Lamento muito os transtornos
Que trago para essa casa
Pois essa tristeza me arrasa
Ao olhar em nosso entorno.

Minha desgraça se assemelha
Àquelas antigas historias
Que trago em minha memória
Sobre as negras ovelhas.

Eu atraio somente desgosto
Para quem está ao meu lado
Trago o meu coração magoado
E me sinto como um encosto.

Papai Baratoso
Não fale assim, minha filha. Eu vou matriculá-la num colégio para crianças especiais. A qualidade do ensino é ótima e você não se sentirá deslocada. Se você for uma boa aluna pode vir a tornar-se uma pessoa importante e influente em nossa sociedade.

Mamãe Baratoso
Seu pai tem razão, menina
Lá o ensino é muito bom
Para as baratas albinas,
Pergunte ao Dr Baratão.

Ele formou-se em Direito,
Parece um floquinho de neve
E, no entanto ninguém se atreve
A demonstrar-lhe preconceito.

Não importa se és diferente,
O que valem são os valores
Não se importe com os clamores
Que vêm dessa estúpida gente.

Nós seremos teu forte escudo
Vamos estar sempre contigo
E te daremos um bom abrigo
Contra todos e contra tudo.

Narrador
Kika recebeu comovida o apoio de toda a família. Ela sentiu um grande alívio ao perceber o quanto era amada. O Papai Baratoso pediu-lhe que tivesse paciência por mais duas semanas, quando ela iria para a nova escola.
Enfim chegou o grande dia. Ela saiu com uma comitiva que a acompanhou até a porta da bela instituição de ensino onde o diretor recebia os novos alunos. Ela foi para o seu alojamento e na manhã seguinte compareceu à aula inaugural. O professor Antenas coordenador do curso começou com uma palestra bastante interessante sobre preconceito.

Professor Antenas
Vamos ter uma conversa
E estabelecer certas regras:
A cor aqui não interessa
Seja branca, azul ou negra.

O tom da pele nada muda,
Não interfere no proceder,
Não atrapalha nem ajuda
Na boa formação de um ser.

Não é ruim nem é bom
Pois não afeta o intelecto
Barata branca ou marrom
Continua o mesmo inseto.

Vocês só são diferentes
Porque são uma minoria
Matemática, simplesmente
Em outras palavras: hipocrisia.

Narrador
Sábias palavras. Se começassem a nascer mais baratas como Kika e menos como as ‘normais’ algumas baratas brancas teriam preconceito com relação às marrons. Mas porque preconceito? Por que elas seriam diferentes e muitas baratas pobres de espírito consideram isso como uma inferioridade.

Narrador
O curso durou 14 longos anos. Era integrado em todos os níveis. Do ensino elementar ao superior em um só local. Coisa de baratas de primeiro mundo. Kika destacou-se como uma das melhores alunas da classe e escolheu Pedagogia como carreira. Ela passava os fins de semana na casa dos pais, mas evitava sair para não sofrer constrangimento. Quando estava no último ano do curso superior ela conheceu Igor Baratta, um jovem brilhante e bem apanhado. Foi amor à primeira vista. Ele enviou um lindo buquê de flores para Kika que ficou sensibilizada. Então ele veio lhe falar no intervalo das aulas:

Igor
Minha fofa sou-lhe grato
Por aceitar meu buquê
E quero fazer um trato:
Serei fiel a você.

Em troca quero carinhos
E habitar teu coração.
Eu cansei de ser sozinho
E me dói a solidão

Quero te dar um ninho
E uma imensa prole
De duzentos baratinhos
E que você me console.

Eu nunca porei em teu rosto
Uma marca de tristeza
Ou uma sombra de desgosto
Podes disso ter certeza.

Narrador
Foi um momento inesquecível para a moça. Ela há muito esperava uma declaração formal de amor de seu galante príncipe encantado e finalmente chegou o tão sonhado momento.

Kika
Meu branquelo adorado
Seu pedido me enternece
Pois Deus ouviu minhas preces
E te colocou ao meu lado.

Minha esperança se renova,
Meus pais ficarão exultantes
Mas eu não lhes falarei antes
De terminarmos as provas.

Será uma surpresa grata
Quando eu disser que passei
Com louvor e ainda encontrei
Um rei entre tantas baratas.

Narrador
Kika tira excelentes notas e escreve para seus pais contando as novidades. Ela fala também, é claro, de seu grande amor e dos planos para o futuro. Diz que guardou a surpresa para o fim e que no dia seguinte eles iriam conhecer o Igor na festa de formatura. Quando chega a esperada data todos estão exultantes porque, embora adorem a escola os jovens sentem uma imensa saudade do constante convívio familiar. Amanhã será a festa da formatura e os parentes e amigos dos alunos estarão lá para prestigiar a festa. Nem todos chegam até o término do curso superior, mas a maioria consegue esse feito fantástico e a festa é de arromba.
Dez horas da manhã e o lugar já está lotado. Finalmente e por uma grande coincidência Papai Baratoso encontra a filha junto com o futuro genro. Alguns das dezenas de parentes dos dois pombinhos já estavam com eles, porém a presença mais festejada é a dos velhos, sem dúvidas.

Kika
Esse baratão cascudo
E o meu pai amado
A ele eu devo isso tudo
Inclusive estar ao seu lado.

Ele é meio invocado
Às vezes eu me assusto
Mas ele é bom e justo
E muito tem me apoiado.

Minha mãe é uma doçura
Minha varinha de condão
Ela moldou meu coração
Com carinhos e candura.

Narrador
Que festa! As baratas dançavam a valer. Algumas davam vôos rasantes, apesar de ser proibido, mas no calor da alegria algumas regras acabam sendo quebradas.
Era um mar de asas que visto de cima parecia um manto marrom e branco e muitos amores e grandes famílias iniciaram-se ali, naquele dia. De manhã a festa acabou e todos foram descansar um pouco para partirem para suas casas na manhã seguinte. Quando chegaram a suas cidades natais foram muito bem recebidas. Afinal não eram brancas qualquer, mas baratas especiais com formação superior. Ainda havia alguma hipocrisia entre aqueles insetos, mas as pessoas mais evoluídas e sensatas já aceitavam perfeitamente essas irmãs de cor e havia até alguns casamentos inter-raciais. Era a evolução natural, tendo em vista que as branquelas, como eram chamadas pejorativamente as baratas brancas, aos poucos mostravam que em nada devem aos marrons, havendo algumas inferiores ou superiores como era de se esperar.
Hoje a família cresceu. São 48 baratos sendo 2 brancos que também estão estudando na mesma escola dos pais. Eles são respeitáveis cidadãos, tendo se tornado escritores e professores universitários.

FIM

quarta-feira, 2 de julho de 2008

O Soldado e o Coronel

Narrador
Átila sempre foi um ótimo aluno. Com vinte e um anos prestou concurso para a Academia de Polícia Militar e formou-se com distinção.
Na tropa era um oficial considerado mão de ferro. Excelente atirador e muito corajoso ele ia sempre à linha de frente nos embates com a marginalidade.
Certa vez seu motorista ficou doente e foi destacado outro soldado para dirigir a sua viatura.
Rogério era veterano na polícia. Um humilde soldado, mas também tinha uma folha de serviços invejável. Era um homem de quarenta e oito anos e com muita experiência e forma física invejável apesar de não ser tão jovem. Ele tinha a mesma idade do Coronel Átila de quem pretendia ser motorista.
Mas tinha uma aparência, no mínimo estranha: era enorme, com um metro e noventa e cinco de altura e pesava cento e trinta quilos. Os braços e pernas eram verdadeiras toras e era muito feio. Tinha um aspecto assustador, mas era uma pessoa dócil e gentil.
O Coronel quando viu o novo motorista não gostou. Chamou o Capitão responsável pela escolha e bradou entre sério e brincalhão:

Coronel
Você é cego ou burro?
Não tem nenhum bom senso.
Eu muitas vezes penso
Que merecias um murro.

Escolheu esse motorista
Apenas por brincadeira
Ou quem sabe é cegueira?
Precisas de exame de vista!

Parece que você gosta
De me ver descontrolado.
Traz uma figura descomposta
Pra dirigir do meu lado.

Capitão
Coronel eu não entendo,
Realmente não estou vendo
O que ocorre de errado
Com esse pobre soldado.

Eu bem conheço o Rogério,
É um rapaz muito sério,
E um militar excelente
Há anos está com a gente.

Ele tem excelente folha
E pareceu-me boa escolha.
Ele sempre foi um soldado
De comportamento ilibado.

Narrador
O Capitão tinha razão. Ele mesmo já havia participado de diversas incursões com o Rogério e era um grande admirador de sua coragem e competência.
Mas o Coronel não entendia dessa forma. Para ele a aparência era tudo. Como ele iria visitar autoridades e pessoas influentes com um motorista tão feio. Ele queria um soldado atlético, de ótima aparência e que causasse uma boa impressão. O Capitão achava uma idiotice porque o importante para ele era a competência.

Capitão
Coronel, isso não é justo,
Pois pelo que estou vendo
Ele não é tão horrendo
E não causa nenhum susto.

E eu fico mesmo sem jeito
Com essa ingrata missão
De dispensar o cidadão
Por um simples preconceito.

Desculpe meu Comandante
Mas como oficial adjunto
Peço-lhe que pense no assunto
Não querendo ser arrogante.

Narrador
O Capitão tinha intimidade para falar assim com o Coronel porque eles eram amigos de longa data. Mesmo quando Átila tinha esses ataques de perereca não se esquecia da amizade pelo Capitão, apenas era o jeitão dele e todos já o conheciam. Algumas vezes ele era mesmo insuportável.

Coronel
Capitão façamos o seguinte:
Vamos chegar num acordo
Eu vou contar até vinte
E troque esse porco gordo.

Quero alguém inteligente
Para a minha viatura.
E faça de seu assistente
Essa horrível criatura.

Eu que estou no comando
Isso não está em questão.
Aqui sou eu que mando
E já tomei a minha decisão:

Mantenha-o longe de vista
E isso não é negociável
Então, por favor, não insista
Porque isso é inaceitável.

Essa é uma ordem agora,
Não quero esse elefante.
Eu vou te dar uma hora
Pra trocar esse gigante.

Narrador
O Capitão era amigo do Coronel, mas até certo ponto. Afinal tratava-se de uma instituição militar aonde a hierarquia vem em primeiro lugar. Na verdade ele não teve coragem de revelar a Rogério o verdadeiro motivo de sua dispensa então o chamou e explicou-lhe que, tendo em vista o porte físicom seria um desperdício ele ficar preso a uma viatura. Que ele voltaria para a ronda e outro soldado ficaria como motorista do Coronel.
Rogério ficou muito chateado porque estava cansado de incursões em favelas. Já havia sido baleado duas vezes, então queria uma função onde não precisasse se envolver em missões de risco. Mas era extremamente profissional e respondeu: -Sim senhor, Capitão.

Capitão
A ordem já foi cumprida.
Como ordenado foi feito.
Com obediência e respeito
O Rogério está de saída.

Escalei um outro à altura
Conforme foi determinado
Um soldado fino e educado
Com muita elegância e cultura.

Ele é um novo recruta
E tem uma boa imagem
Não sei quanto a coragem
Mas está feita a permuta.


Narrador
O Coronel Átila olhou de soslaio o novo motorista e concordou com o Capitão. Agora ele tinha um soldado apresentável para dirigir o seu carro. Afinal de contas ele era o dono do pedaço e não precisava de guarda-costas nem atirador de elite porque não tinha confrontos com bandidos desde o tempo de capitão. A sua principal preocupação era com a imagem.

Coronel
Agora foste mais coerente,
Colocando alguém adequado.
Para andar ao meu lado
Sem assustar a minha gente.

Pode até parecer tolice
Mas acho muito importante.
Por que seria chocante
Se um meu amigo o visse.

É um sujeito muito tosco
E além de tudo horroroso
Andar perto desse feioso.
Iria ser um grande enrosco.

Narrador
O novo motorista assume sua função e segue na rotina normalmente e o pobre Rogério ficou na mesma sina de sempre de trocar tiros com a marginalidade.
O Coronel Átila tinha uma rotina imutável. Às 06h00 ele saía de casa e o carro deveria estar aguardando em frente da residência.
Ele pegava a principal via da Cidade em direção ao Centro, onde ficava o Batalhão e vinha lendo o jornal ou falando ao celular. Às 18h00 ele retornava para casa, exceto quando algo o obrigava a ficar até mais tarde.
Foi o que aconteceu naquela segunda-feira. O Coronel retornava mais tarde para casa quando se viu, repentinamente, no meio de um pesado tiroteio entre bandidos entrincheirados dos dois lados da rua em que estavam passando. Ora, quando viram uma viatura policial os marginais esqueceram as rivalidades e abriram fogo contra a patamo.
Diversos disparos atravessaram a viatura e milagrosamente apenas uma bala pegou de raspão na perna do Coronel.
Eles entraram um uma rua sem saída e o Coronel pediu reforços pelo rádio informando a localização.
Por ironia do destino o Rogério estava de ronda exatamente nas redondezas do tiroteio e foi resgatar o Coronel.
Átila e o motorista estavam se defendendo como podiam. Por sorte estavam razoavelmente protegidos, mas eram muitos os bandidos e eles resistiriam por pouco tempo. Para agravar a situação o Coronel não podia locomover-se direito devido ao ferimento.

Coronel
Vamos resistir até o fim,
Mostrar que temos garra,
Não vão me levar assim,
Vai ter que ser na marra.

Não é o primeiro embate
Que com bandidos eu travo.
Talvez esse aqui me mate
Mas lutarei como um bravo.

Esse é o meu trabalho:
Enfrentar esses velhacos
Vou mostrar quanto valho
E o quanto eles são fracos.

Eu sou bravo combatente,
Não me assusta essa matilha.
Não fujo de delinqüentes
E cambada não me humilha.

Se for preciso eu morro,
Porém jamais arrefeço.
Se não vier o socorro
Eu vou cobrar alto preço.

Soldado
Senhor o estrago está feito
Eu não estou vendo saída.
Agora não tem mais jeito,
Vou salvar a minha vida.

Porque eu preciso rever
Minha mulher e meu filho.
Eu não nasci pra morrer
Com o dedo no gatilho.

Desculpe-me meu Coronel
Mas o bicho tá pegando.
Vou pegar o meu chapéu
E vou sair daqui voando.

Narrador
Havia um buraco em um muro próximo de onde eles estavam e o motorista estava tomado pelo medo. Ele estava certo de que morreria junto com o oficial, então correu para esse buraco que dava acesso a uma saída segura atrás do muro de concreto.
Passou pela cabeça do Coronel Átila dar um tiro no Soldado fujão, mas ele controlou-se porque não poderia atingir ninguém pelas costas.
Nesse ínterim chega a viatura com o Soldado Rogério e um parceiro e pára a uns 50 metros do Coronel. Eles estão sozinhos, mas são dois guerreiros valorosos e trocam tiros de igual para igual com a marginalidade. Chega, então, outra viatura e a coisa começa a equilibrar, mas a situação do Coronel é muito critica e precisa ser tomada uma medida urgente ou antes de estar tudo sobre controle o Coronel já estará morto.
O soldado Rogério, então, grita para os companheiros:

Rogério
Vou tentar o resgate
Do nosso comandante.
Sustentem o combate
Por mais alguns instantes.

Protejam a retaguarda
Mantenham cerrado fogo
Que o reforço não tarda
E vamos virar esse jogo.

A raça desse bando pensa
Que a guerra está vencida,
Mas o crime não compensa
Nem essa vida bandida.

Narrador
E lá se foi Rogério, esgueirando-se entre o cerrado tiroteio, sob a cobertura de seus bravos companheiros.
O Coronel ficou emocionado ao ver o Rogério ali para resgatá-lo; logo ele que havia sido preterido por ser um ‘elefante ignorante’.

Coronel
Rogério, soldado valoroso,
Enfrentaste tanto risco
Nesse tiroteio perigoso
Pra colocar-me em aprisco?

A vida, por fim começa
A mostrar-me o bom caminho,
Ela pregou-me uma peça
Deixando-me aqui sozinho.

Quis mostrar-me o engano
E minha terrível injustiça
Naquele momento insano
E enviou-te pra essa liça.

Eu já rezei minhas preces
Porque me deixou o covarde
E graças a Deus apareces!
Com ele eu acerto mais tarde.

Narrador
Rogério emocionou-se ao ver aquele homem, antes tão prepotente pedir-lhe desculpas com humildade. Eles foram, enfim, resgatados e, ao chegar ao Batalhão pediu ao Coronel que não punisse o Soldado que abandonara a batalha porque nem todos têm a mesma índole e a mesma coragem.

Coronel
Mostras nobre coração,
Serás meu fiel escudeiro,
Mais que isso, meu irmão,
Tu serás o meu parceiro.

Tens um caráter ilibado
Demonstras uma alma pura
Por que lutaste ao meu lado
Num momento de agrura.

Aprendi que a aparência
Na verdade pouco importa,
O que vale é a consciência,
O corpo virará carne morta.

Agora eu vejo claramente
Que eu posso contar contigo
E o quanto você é valente,
Muito obrigado, meu amigo.

Narrador
Átila comandou o Batalhão por mais alguns anos. Enquanto ele lá esteve contou com a presença fiel e segura de seu amigo. Ele aprendeu que o corpo é apenas um invólucro e que nem sempre os frascos mais vistosos têm os melhores perfumes.
Hoje os três estão aposentados, mas continuam amigos. Por vezes eles ficam horas relembrando os tempos de caserna e como um ato impensado fez de Átila uma pessoa melhor.


FIM

terça-feira, 1 de julho de 2008

Pedro, o Lenhador

Em algum lugar, há muitos e muitos anos, havia uma floresta na qual moravam Pedro o Lenhador com sua linda família. A casa que ele mesmo construíra era simples e aconchegante. Pedro mantinha rigoroso controle da floresta e cultivava mudas de carvalho em uma estufa de responsabilidade de sua esposa Helena e dos filhos Júnior e Deusa. Para cada árvore cortada outra era plantada no lugar.

Helena
Pedro, levanta que as cotovias
Já te chamam pro batente.
A cigarra lá fora anuncia
Um dia gostoso e quente.

Teu lanche já está na mesa,
Hoje está farto o rango.
Tem geléia de framboesa
E tem doce de morango.

Pedro
Helena não pise em meu calo
Que o dia inda está a raiar.
Pra que acordar o galo?
Me deixa em meu lugar.

E joga o travesseiro no rosto de Helena que o abraça sorrindo.
Dava gosto de ver aqueles dois sempre de bom astral e se amando. A casa era quente e aconchegante, principalmente pelo grande calor humano nela encerrado.

Pedro sai e agora Helena tem que acordar as crianças para irem à escola que fica em um vilarejo próximo.

Helena
Levanta, Júnior levado,
Anda, Deusa pimentinha,
Os dois estão atrasados,
Vão saindo da caminha!

Já espera vocês o mestre,
Vão à escola; vão sorrindo,
Sorvendo esse ar campestre,
Curtindo esse dia tão lindo.

Helena tinha muita dó das crianças. A floresta é fria no inverno e até mesmo em boa parte do verão. Mas a responsabilidade faz parte da formação e ela não quer que os dois tenham um viver duro como o do pai que tem uma vida confortável, mas à custa de muito esforço. Por sorte o homem é um touro.

Pedro
Trabalho! Trabalho! Trabalho com gosto!
Acordo contente, com o ego disposto.
Eu vivo a vida, pois a vida é uma festa,
Sou bravo guerreiro na minha floresta.

Dos braços tão fortes eu tiro o sustento,
Sou ágil e bravo. Eu corro com o vento,
A lida diária eu encaro sem medo,
O dia começa e começa bem cedo!

E o tempo passa... Pedro agora tem 30 anos e é uma máquina de trabalhar. É bonito e cativante. Helena também está uma belíssima mulher, companheira e amiga, sempre pronta a ajudar o marido e as (eternas) crianças a vencerem os obstáculos da vida.
Deusa termina o ensino médio um ano antes de Júnior, pois é um ano mais velha. Concluiu com louvor e recebeu o merecido diploma. Nesse dia Pedro não foi trabalhar. Fez questão de prestigiar a filha na festa de formatura. Ele só não sabia que iria conhecer o futuro genro...

Pedro
Eu sinto um prazer infindo
Por tanta graça alcançada.
Deus deve estar sorrindo
Com a alma engalanada.

Mostra-me um belo cenário,
Minha filha se formando,
O canto de mil canários,
Um Sol me iluminando.

Graças, Senhor, pela vida!
Estou tão feliz nesse dia.
Ver minha filha querida
Transbordando de alegria.

Apesar de humilde, o colégio era muito bom e Deusa tinha conquistado um importante marco. Falar em marco, esse era o nome de seu pretendente que ela timidamente chama para conhecer o pai.

Deusa
Marcos pede minha mão
Ao senhor, meu pai amado.
Abençoa essa união
E caminha ao nosso lado.

Tu és meu forte pilar,
De ferro e de concreto,
É tão fácil caminhar
Tendo você por perto.

Ao ver o sogro no alto de seus quase um metro e noventa Marco fica um pouco intimidado. Mas Pedro logo abre um sorriso e quebra o gelo, esticando a mão para o futuro genro.

Pedro
Tu foste por minha filha
O bom varão escolhido,
Então tua estrela brilha,
Serás outro filho querido.

Tens as chaves de minha casa,
Bem-vindo ao nosso rebanho.
São bem grandes nossas asas
E um outro amigo eu ganho.

Marco fica sem palavras. Não esperava que o pai de Deusa fosse tão legal, embora ela vivesse afirmando isso, ele emocionado, responde:

Marco
Eu sou honesto e honrado,
E Deusa é o meu galardão.
Eu vivo um sonho dourado,
Palpita o meu coração.

Serei mais um feliz membro
Dessa família singela;
E confesso, não me lembro
De outra data tão bela.

Pedro chama Helena e conta a novidade. A mãe fica encantada com o jovem. Vê-se que é educado e de bem. Abraça o casal fraternalmente e os convida a visitar a casa da família:

Helena
Nosso viver é honroso
E nosso lar é modesto
Mas é quente e generoso.
O resto é apenas resto.

Eu percebo em teu olhar
Que serás um bom marido,
Não costuma me enganar
Esse meu sexto sentido.

Pedro e Helena levam os pombinhos para almoçarem na casa deles.
Estão todos radiantes de felicidade. Naquele lugar é costume os jovens casarem-se em tenra idade.
Júnior é um belo rapaz, cheio de pretendentes, mas ainda não fez nenhuma escolha. Ele ficou contente por conhecer o cunhado que em futuro ainda um pouco distante irá desposar a sua irmã.
No ano seguinte é a formatura do jovem. Seu pai, entretanto ainda não irá conhecer a futura nora nesse dia.
O jovem está especialmente feliz, pois conseguiu uma bolsa de estudos em um excelente colégio na Capital. Pedro fica um pouco triste, pois sabe que o filho só estará em casa nos fins de semana, mas, por outro lado, o garoto terá o futuro praticamente garantido.

Pedro
Meu ser está pleno de felicidade,
Outro dia de júbilo me espera.
Não é um sonho. É pura realidade,
É uma doce e divinal quimera.

Um filho que vale um tesouro,
Ou melhor, vale muito mais ainda,
Porque nem a prata nem o ouro
Iriam pagar essa alegria infinda.

Júnior
Também te amo, meu pai
E quero que não te esqueças:
Pra onde o meu corpo vai
Estás em minha cabeça.

Pra nós o longe é perto
Porque somos taça e vinho.
Tu apontas o caminho certo
Eu não vivo sem teus carinhos.

E a vida continua na abençoada família. Deusa termina o ensino médio junto com o noivo e ele consegue um emprego onde recebe um salário não muito alto, mas o suficiente para começar a preparar o enxoval para o casamento.
Deusa torna-se extremamente prendada. Aprende pintura a óleo na oficina de artes do colégio as quais passa a vender por um bom preço.
Júnior termina o ensino médio e já está matriculado no curso de Arquitetura em uma faculdade federal, tendo em vista ter passado com louvor no vestibular.
O tempo passa e ele também conhece sua princesa com a qual se casa após formar-se.
Deusa casara-se um ano antes com Marco e vivem em uma casa próximo à de Pedro.
Deusa presenteia o pai com uma linda neta risonha e saudável que vem dar uma nova luz àquela casa já tão abençoada.
Júnior tem dois gêmeos também lindos. Ele trabalha na Capital, mas freqüenta assiduamente a casa de Pedro, a qual os garotos adoram. De uma família tão unida não se podia esperar outra coisa.

Narrador
Pedro, Deusa, Júnior e Helena,
Uma família pequena
Mas repleta de calor
Comungando imenso amor.

Agora ainda está mais bonita,
Tem gatinha com laço de fita,
Tem dois moleques levados
E gritos pra todos os lados.

É tão sublime o afeto
Que eles nutrem pelos netos
Que a palavra me embarga
Com tão poderosa carga

Que brotou dessa semente
E trouxe os pinguinhos de gente
Pra abrilhantar a família
Que agora ainda mais brilha.

O amor é o sentimento mais sublime legado por nosso Senhor eu sua Lei máxima. Sem amor nada vale à pena.

Narrador
Não vingam tâmaras em espinheiros,
Se tu queres amor tens que amar primeiro
Siga do bom Deus os Mandamentos
E tenha por recompensa bons momentos.

Aqui essa singela historia termina
E ela com sapiência nos ensina
Que a vida no mundo tem mais valor
Se sabemos dividir o nosso calor.



FIM


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segunda-feira, 30 de junho de 2008

Barraco da favela

Vejo a rua da janela
Do barraco da favela.
Vejo a morte, vejo a vida,
Vejo a bala perdida.
Vejo a Justiça que tarda
E o traficante de farda.
Vejo a roda de maconha,
E a polícia sem vergonha.

Da janela
Do barraco da favela.
Vejo o brilho dos morteiros
Acordando o morro inteiro.
Vejo passando um bonde,
Um bandido que se esconde,
Ouço vozes de crianças
Sem futuro ou esperança,
Vendendo drogas nas bocas,
Jogadas na vida louca.

Da janela
Do barraco da favela.
Vejo o dedo no gatilho,
O pai estuprando o filho,
Vejo a moça na sarjeta
E a morte na roleta.
Vejo o assalto na esquina,
Vejo cheirar cocaína,
A juventude no vício
Lançada no precipício.

Da janela
Do barraco da favela.
Vejo as balas traçantes
Das armas dos traficantes,
Vejo os corpos de inocentes
Na vala dos indigentes,
Vejo o fuzil, a pistola,
O moleque a cheirar cola,
Vejo os prédios suntuosos
E os carros. luxuosos

Da janela
Do barraco da favela.
Vejo a casa soterrada
Na lama da enxurrada,
Pessoas esperam socorro
Que não vai subir o morro
Por que o chefão não deixa.
E se algum coitado se queixa
Da justiça dos bandidos,
Vai morrer ou é banido.

Da janela
Do barraco da favela
Todo dia é sempre igual,
Vejo o bem e vejo o mal
Na minha Comunidade.
A mentira e a verdade,
A tristeza e a alegria,
O real e a fantasia
Andam juntos de mãos dadas
Nas vielas apertadas
Que eu vejo da janela
Do barraco da favela.

Cancioneiro

Nesse mundo onde fico,
De onde vem a inspiração,
Eu ouço Alceu e Chico,
Nas letras de uma canção,

Passo meus bons momentos,
Criando doces poesias,
De sorrisos e lamentos,
De tristezas e alegrias.

Então surgiu-me a idéia
De cantar nossos artistas,
Separando na bateia
A preciosa ametista.

Elba e Zé dois cantadores,
Paraíba, tu nos deste,
Cantam a luta e as dores
Dos meus irmãos do Nordeste,

Tem um que é genial,
Toca em chaleira e bacia,
Seu nome: Hermeto Pascoal,
Em tudo ele vê melodia.

Veio o Luiz, lá do Norte,
Com sua voz de trovão,
Trazendo seu canto forte
Nas asas de um baião,

E pra aumentar o seu brilho,
Ele veio acompanhado,
Pelo Luiz, o seu filho,
Compositor arretado.

É tão rico o cancioneiro
Por esse Brasil inteiro,
Tem cantor, tem violeiro,
Tem tambor e tem pandeiro.

Da Bahia veio a Gal,
Bethânia e Caetano Veloso,
Gilberto Gil Genial,
Formando o Quarteto famoso.

O Geraldinho Azevedo
Merece também ser citado,
Soltando sua voz sem medo
Como pássaro encantado.

Do Ceará veio um bardo
E em boa companhia,
Ele se chama Ednardo,
E é um mestre na poesia.

O Raimundo, ave tão rara,
Mais parece um colibri,
No último pau de arara
Deixou o seu Cariri,

Fugiu da sede e da fome,
Que é flagelo tão antigo,
Vergonha vil e infame.
Um verdadeiro castigo.

Tem Osvaldo Montenegro
Ao som dos seus bandolins.
Tem Milton, famoso negro
Belchior e Ivan Lins.

E a nossa lenda viva,
Cantando o Brasil com fé,
A mais linda patativa,
Orgulho de Assaré.

Simone, de voz de ouro,
Grande nome brasileiro,
E outro grande tesouro,
O nosso Zeca Baleiro.

Outro Zeca que me encanta,
Eu cito com muito carinho,
Nos empolga quando canta,
O soberbo Pagodinho.

E tantos e tantos outros
Existem de grande valia,
Que não cabem tantos monstros
Nos versos de minha poesia.

É tão rico o cancioneiro
Por esse Brasil inteiro,
Tem cantor, tem violeiro,
Tem tambor e tem pandeiro.

Nada vejo

A minha volta nada vejo de tristeza,
Não vejo a boca a mendigar migalhas,
Não vejo a podridão do vil canalha,
Não vejo d’alma negra a impureza.

Não vejo a maldade que se espalha,
Não vejo as crianças indefesas,
Não vejo do bandido a pobre presa,
Não vejo o pobre a carregar cangalha.

Não vejo a densa nuvem de fumaça
Que sobe da maconha em plena praça.
Não vejo nada, mas tampouco nego.

Pois Deus, em sua bondade infinita
Livrou-me dessa infame vista aflita,
Não vejo esse mundo. Eu nasci cego!

Uma parte apenas

Apenas uma parte
Eu já conheço:
É esse teu apreço
Pela arte...

O resto é mistério
É não sabido.

Existe um ar funéreo
E escondido
Atrás desse teu olho
Que nos fita.

Por isso eu recolho
A alma aflita
E fico mudo

Por que o teu olhar
Mesmo sem falar
Já nos diz tudo.

O abutre

Sei que dirão: lá vem o abutre,
Aquele poeta triste e sombrio
Que tem prazer e que se nutre
De coisas que dão arrepios.

Pois que digam. Pouco me importa,
Falar de tristezas não é o que almejo.
Não me apraz cantar as coisas mortas
Mas eu só pinto aquilo que eu vejo.

E tudo que eu vejo é melancolia,
Olhos marejados de desesperança
São bocas suplicantes e vazias
De infelizes e desnutridas crianças.

O negro da alma humana é fértil terra
E rápido a maldade nele grassa,
É é nesse vil terreno que se encerra
A sombra da infâmia e da desgraça.

O mundo está podre, está bichado,
Ninguém se importa com o seu semelhante,
Cada qual só vê o próprio lado
Num proceder covarde e revoltante.

Sim. Sou um ser humano aziago,
Trago na testa a insígnia do mal.
Sou pesadelo e nas noites vago
Com a certeza de um triste final.

Tu não desejas a minha presença,
Tu me desprezas e me repudias,
E me evitas como uma doença,
Mas não devias, por que sou tua cria.

Cemitério

A luz imprecisa da Lua
Caindo suave do céu,
Vai jogando sobre as ruas
As sombras dos mausoléus.

Cheias de cruzes e santos,
São imensas avenidas,
Lavadas de velas e prantos
Das horas de despedida.

O silêncio absoluto,
Querendo ser solidário,
Também escolheu o luto
Para ser seu vestuário.

Aqui é o último pouso,
O adeus definitivo.
O derradeiro repouso
Do corpo outrora vivo.

Ninguém quer a visão
Horrível e nauseabunda
De tua carne em podridão,
Virando carniça imunda.

Também não há diferenças,
Todos aqui são iguais,
Independente de crenças,
Cor ou classes sociais.

No monumental jazigo
Ou na humilde sepultura,
Deitam-se rico e mendigo
Na infinda noite escura.

O teu corpo velho e gasto,
Pelo qual tanto amor tinhas,
Será dos vermes repasto,
Adubo de ervas daninhas.
Largado num cemitério,
Lúgubre e abandonado,
De ar sombrio e funéreo
Até o Dia de Finados.

Na laje de mármore polida,
Fica a última homenagem,
De quem te amou nessa vida,
E votos de boa viagem.

A Sonetista

(Acróstico)

Sou a verdade e sou a mentira,
Invento os sonhos e os pesadelos,
Levo a doce prece e o vão apelo
Voando à noite no tanger da lira.

Ilumina-me o gentil brilho da Lua,
Ando pela vida, despudorada nua,
Sorvo tua alma como uma vampira,
Carrego comigo tuas fantasias.

Habito o espaço das mentes vazias,
Mostro sem véus o amor e a ira,
Imortalizo cada vil momento,
Destilo um bálsamo em teu sofrimento,
Trago no âmago a verve que inspira.

É o bicho!

Vejo quebradas lança e armadura.
Há projéteis jogados pelo chão.
Morreu com a espada em sua mão
Bem no meio de uma noite escura.

Sem ele sinto uma sensação
De grande desespero e amargura.
Sua presença forte e segura
Guiava-me através da escuridão.

Hoje em cada esquina há um perigo
E mesmo se ele estiver contigo
A morte um dia vem. Ela não tarda

Porque no absurdo dessa vida
Nem mesmo eu encontrei guarida;
Assassinaram meu Anjo da Guarda!

A Fada Luminosa

Narrador
Em um Reino depois do fim do mundo, além do além, há um bosque encantado, cheio de flores, pássaros e calmos córregos de água. Existem também muitas árvores frutíferas naquele lugar. Em uma casinha branca à margem de um lago cristalino mora a Fada Luminosa. Ela tem esse nome porque usa uma vestimenta de tecido alvíssimo e ilumina todos os lugares por onde passa. Ela tem uma filha fruto da união com um o Rei Bom Rício, dono de toda aquela região. A menina chama-se Fadinha Bela e também é um ser iluminado.
O bosque encantado faz fronteira com uma Floresta muito feia, cheia de árvores espinhentas e retorcidas que pertence ao Rei Mau Vado.
Essa Floresta era linda, mas foi amaldiçoada por um terrível bruxo após uma luta feroz com o Rei Mau Vado. Ele foi expulso por ter enganado o monarca envenenando o seu mais lindo cavalo. O bruxo foi perseguido e jurou vingar-se indo para a Floresta com sua namorada que estava aprendendo com ele os segredos da magia. Ele passou a criar feitiços contra o Rei que pôs a cabeça dos dois a prêmio.
Para ficarem a salvo, eles criaram um feitiço terrível, transformando a Floresta em um lugar horrendo, mantendo longe o exército inimigo.
Ele casou-se com a jovem e passou a chamá-la de Bruxa Megera e tiveram uma filha: a Bruxinha Sassá.
Era proibido à Fadinha Bela aproximar-se da Floresta Negra. A mãe sabe dos perigos que a filha ingênua corre caso caia nas mãos daqueles dois perversos.

Fada Luminosa
Fadinha tenha cuidado
Fique longe da floresta,
Ali é solo encantado,
Aquele lugar não presta.

O Bruxo, minha querida,
Sempre ronda à espera.
Fica no mato escondido
Astuto como uma fera.

Fadinha Bela
Mamãe, por que existe
Pessoa assim no mundo?
É uma coisa tão triste,
Dá um desgosto profundo.

A pobre Bruxinha Sassá
Está sempre tão infeliz.
Por que ela mora lá
Naquele lugar? Me diz.


Fada Luminosa
Também tenho pena dela.
Uma menina tão bela.
Com aquelas duas cobras,
Não aprenderá boas obras.

Mas destino não se escolhe,
Infelizmente a gente colhe
Sempre aquilo que merece
Então a coitadinha padece.

Paga pelos genitores
Que são cruéis malfeitores
Mas talvez haja esperança
De salvar-se a criança

Pois quem sabe não ocorre
Um milagre e Deus socorre
A pobre Bruxinha Sassá
Daquele tão triste lugar?

Fadinha Bela saiu então com sua varinha de condão para ir à escola de magia, onde aprendia coisas boas, como curar animaizinhos feridos, ajudar as pessoas necessitadas e criar mágicas para beneficiar os semelhantes.
Além disso, todos precisavam estar sempre atentos para criar contra feitiços para as constantes investidas dos bruxos malvados.
O casal de feiticeiros era extremamente ardiloso e era preciso agir rápido sempre que algo de errado ameaçava acontecer com o Reino do Rei Bom Rício. Todo feitiço leva tempo para se concretizar e esse tempo precisa ser o suficiente para que os magos contra-ataquem. Era uma luta constante, sem tréguas. Bruxa Megera e seu marido de tudo faziam para transformarem o bosque numa continuação da Floresta Negra.

Narrador
Fadinha Bela vai cantarolando pelos ensolarados caminhos do bosque. Ela ainda é muito nova para voar, então vai saltitando até a escola, onde a espera a professora.
No caminho ela vê uma menininha sentada, chorando, em uma pedra. É a Bruxinha Sassá!? Ela se aproxima, pois não tem medo da menininha. Ela sabe que a garotinha tem boa índole e ainda não foi ‘contaminada’ pelos pais.
Ela chega de mansinho e pergunta: -Bruxinha Sassá o que faz aqui sozinha chorando?
A menina se assusta ao ver a Fadinha Bela ao lado. Elas nunca haviam trocado uma palavra, até porque os pais da bruxinha ficariam furiosos se soubessem que elas tiveram um encontro e a filha não tentou nenhuma maldade. Era proibido à bruxinha ir ao bosque sozinha.
Ela se refaz do susto: - Chorando? Quem disse que eu estou chorando? Foi só um cisco que caiu no meu olho. Aliás, você não deveria conversar comigo, pois sou perigosa, sabia?
Fadinha Bela exclamou: Ah! Bem se vê que você é perigosa como uma leoa desdentada!
Fadinha Bela soltou uma sonora gargalhada e as duas começaram a conversar animadamente. A conversa foi a seguinte:

Fadinha Bela
Querida Bruxinha Sassá
Sei que você não é má.
Quero que você diga:
Quer ser minha amiga?

Bruxinha Sassá
Mas fadinha eu não posso
Por causa desses nossos
Destinos tão diversos.
Meus pais são tão perversos.

Eu quero ser do bem,
Não magoar ninguém.
Mas eles não pensam assim
E o que será de mim?

Fadinha Bela
Amiguinha, fica calma.
Não deves fazer coisa ruim.
Não podes manchar a alma
Porque seus pais São assim.

Nós vamos pedir ajuda
À minha mãezinha amada.
Quem sabe ela nos acuda
E saímos dessa cilada.

Fadinha Bela foi para a escola e não falou nada sobre o encontro para a professora. Na volta a Bruxinha Sassá a esperou escondida e elas seguiram juntas até a casa da Fada Luminosa.
Fadinha Bela entrou sozinha e falou:

Fadinha Bela
Mamãe você acredita
Que a Bruxinha Sassá
Mereça tanta desdita
Morando naquele lugar?

Consultei meu coração
E ele falou-me baixinho:
-Pergunta a tua mãe se não
Pode haver outro caminho...

A Fada Luminosa percebeu que alguma coisa estranha estava acontecendo e falou:
-Fala, minha filha, o que te aflige?
A menina contou que havia encontrado a Bruxinha Sassá no caminho para a escola e que havia conversado com ela.
Fada Luminosa diz, zangada:
-Meu amor, você não sabe que eles são perigosos. Não devias fazer isso. A partir de amanhã eu te levarei à escola por que hoje foi a Bruxinha Sassá, amanhã poderá ser um dos pais dela. Aliás, muito me admira ela vir para essas bandas assim, durante o dia. Eles morrem de medo dos soldados do teu pai.
Fadinha Bela, então balbuciou:
-Ela veio comigo.
A mãe da menina quase caiu para trás.
-O que?
Saiu de casa e viu a bruxinha, acuada em um canto. Ela já estava preparada para fazer uma mágica a fim de proteger a filha dos feitiços da bruxinha, mas de pronto se arrependeu.
Aquela pirralha estava tão desprotegida e precisando de ajuda que ela sentiu pena em seu coração materno.
Pegou a menina pela mão e levou-a para dentro.
Então elas começaram a conversar:

Fada Luminosa
Você disse aos feiticeiros
Que sairia da Floresta?
Se não falou só me resta
Enviar um mensageiro.

Você sabe que não podes
Vir para estas terras.
Se o bruxo souber explode
E vai arrumar uma guerra.

E ele virá com tudo
Aquilo que tem direito,
E então não me iludo,
Por que não terá mais jeito.

Será guerra declarada,
Uma batalha aberta,
Vão ser bruxos contra fadas
E a infelicidade é certa

Entretanto ainda há tempo
De resolver esse impasse.
solucionaremos o contratempo
Antes que esse mal grasse.

Narrador
Fada Luminosa manda chamar o marido Rei Bom Rício para que ele ajude na empreitada.
O Rei fica sensibilizado com o ocorrido. Ele apóia a esposa em todas as decisões tomadas por ela e retorna imediatamente de uma viagem de negócios em uma Cidade vizinha só para dar apoio à mulher.
Bom Rício forma um grupo com os melhores soldados para irem capturar os dois feiticeiros enquanto não é tarde demais.
O grupo sai a pé e dirigem-se para a Floresta Negra. É assustador. São árvores com enormes espinhos formando uma muralha viva e eles abrem caminho a machado corajosamente. Eles têm pressa, pois precisam chegar o mais rápido possível porque os bruxos certamente já estão preocupados com a ausência da Bruxinha Sassá.
Felizmente era uma barreira bem menos espessa do que parecia e eles conseguiram, enfim, atravessá-la. Eles esgueiram-se entre os arbustos. Vêem o casal de feiticeiro dentro do casebre feio e mal cuidado. Chegam abaixadinhos à uma janela e ouvem a conversa dos dois:

Bruxa Megera
Vamos, marido, se avia
Que lá se vai meio dia
E a menina está fora
Há mais de quatro horas.

Bruxo
Essa menina me paga,
Vou lhe rogar uma praga,
Transformarei em perereca
Essa bruxinha sapeca.

Ela vai comer mosca
Para deixar de ser tosca.
Mas antes vou da uma surra
Naquela menina burra!

Bom Rício ficou arrepiado ao ouvir os dois falarem daquele jeito irado sobre uma menina indefesa, ainda por cima filha deles.
Eles invadiram o casebre e colocaram os dois a ferros. Eles tentaram reagir, mas não tiveram tempo.
Não imaginavam que alguém tivesse a ousadia de tentar invadir a Floresta Negra, por isso fizeram uma muralha viva pouco espessa para economizar feitiço cujos ingredientes eram difíceis de conseguir.
Ao chegarem à casa da Fada Luminosa eles ficaram espumando de raiva ao ver Bruxinha Sassá na casa brincando com a Fadinha Bela, que a essa altura sabia que nada de pior iria acontecer aos pais.
O bruxo vociferou: -Você está de conluio com eles. Esses dois são maus e irão nos entregar ao Rei Mau Vado. Eles nos enforcarão e você será a culpada!
Bom Rício coloca-os sentados em uma cadeira e empunha um pesado pedaço de ferro. Os bruxos tremeram de medo, pois pensava que iriam ser surrados até a morte.
Ao contrario disso, o rei usou o metal para retirar os grilhões e disse:

Rei Bom Rício
Não quero o mal de vocês,
Pois meu coração é puro.
Vamos libertar os três,
Pelo meu Reino eu juro!

Narrador
O casal de bruxos ficou pasmo, pois não acreditava que alguém pudesse tem bom coração a ponto de perdoá-los. Eles vinham do Reino do Rei Mau Vado e não conheciam a palavra misericórdia já que lá era um Reino onde havia muita maldade, dor e ressentimento.
Eles começaram a chorar, emocionados e pediram perdão àquela família boa a ponto de não executá-los.
Bom Rício, então, os alimentou e mandou preparar um banho porque os três estavam imundos dando-lhes roupas decentes.

Bruxo
Senhor peço-lhe perdão
Pelo meu comportamento.
Trago limpo o coração,
Não tenho ressentimentos.

Bruxa Megera
Eu também me arrependo
Por ter sido uma megera
Por que agora estou vendo
A desgraça que eu era.

Vamos lutar doravante
Juntos na mesma batalha.
Vamos seguir adiante
Cortando o mal que se espalha.

Narrador
Eles assim o fizeram. Passaram a usar a magia juntos para o bem. O objetivo agora era trazer o Rei Mau Vado para o lado bom e para isso iriam lutar para livrar aquele povo aflito de seu jugo transformando-os em felizes cidadãos.
Mas isso já é outra historia...

Fim

Obs: esse texto ainda está sendo revisado e sofrerá algumas modificações devido a erros e incoerências ainda não percebidos. Caso descubra algum, por favor, ajude-me avisando.

Todos os Direitos Reservados©

Perguntas intrigantes

O que compõe a madeira?
É uma rede invisível
Arranjada de maneira
Precisa e indescritível.

Um a um, grama a grama
O quebra cabeça colossal
Vai formando toda a trama
Do tecido vegetal.

É um mecanismo complexo,
Caprichoso e intrincado
Mas tem também muito nexo
E ciência encerrados.

Possui toda essa mecânica
Muitos e muitos segredos
Encerrados na dinâmica
Escondidos no enredo.

Por que a mãe natureza
É inesgotável artesã
E borda tanta beleza
Como hábil tecelã.

Num jogo de paciência
Cria formas infinitas
Com inesgotável ciência
Sem erros nem contraditas.

Se o universo contemplo
Eu perco a respiração
Ao perceber os exemplos
De infinita inspiração.

Mas uma questão que intriga.
Talvez eu saiba a verdade.
É uma dúvida antiga
Velha como a humanidade:

É um imenso problema
Que há tantos sec’los aflige.
A solução é um dilema
Pior que o da Esfinge.

Por que as árvores têm vida
E uma pedra é inanimada?
Quem esclarecerá essa dúvida,
Essa intrincada charada?

O que contém o ser vivo
Que o faz tão diferente?
Por que são eles ativos
Diversos dos outros entes?

Eu creio saber o porquê
Ocorrem esses mistérios
E vou falar pra você
Com coesão e critério.

Eu tenho uma teoria
Mas que faz muito sentido.
Parece uma alegoria,
Difícil de ser entendido.

É fruto de muitos estudos
Noites e noites a fio
E eu garanto, isso tudo
Chega a causar calafrios.

A resposta é uma energia,
Que o universo habita
Contem grande sinergia
Difícil de ser descrita.

É uma força vital
Que cria reinos distintos,
Vegetal ou animal
Num diferir bem sucinto.

Como a carga inicial
Numa nova bateria
É com a energia vital
Que a vida se inicia.

Habitando os seres vivos
Desde o seu nascimento
Faz com que fiquem ativos
A partir desse momento.

O metabolismo provê
A total reposição
Da energia do ser
E a sua destruição.

No decorrer da existência
As perdas vão aumentando
Então, como conseqüência
A velhice vai chegando.

As forças vão-se esvaindo,
O ser vai se acabando
Pois a energia saindo
É maior do que a entrando.

Transborda como um dilúvio
E vai compor o universo
Como se fosse um eflúvio
Inexplicável em versos.

Talvez você fique triste
E talvez lhe cause um trauma
Mas na verdade não existe
Espírito, tampouco alma.

O que há é a reciclagem
Dos seres vivos ou não
Uma incessante viagem
De seres que vêm e vão.

E o inferno e o paraíso?
E o dia da redenção?
Não haverá um Juízo?
Tudo é só invenção?

Disse um pensador um dia:
“Há mais entre o céu e a Terra
Do que sonha a filosofia”.
Imensa verdade isso encerra!

Não há um céu ou inferno
Para cristãos e pecadores
E nenhum sofrer eterno
Para purgar nossas dores.

Não me agradam leviandades.
O fato de não haver espírito
É parte de uma verdade
Mas existem os conflitos.

Só tenho a convicção
Que ocorre a reciclagem.
Os mesmos átomos são
Quem movem essa engrenagem.

Eu afirmo, com certeza,
Não cria nada a gestante.
Tudo vem da natureza.
Do que existia antes.

Pela Lei de Lavoisier
Transforma-se toda a matéria.
O que hoje há em você
Pode amanhã ser bactéria.

Porém apenas em parte
A matéria em decomposição
Habita outro corpo, destarte
Não há reencarnação

Já que a vida é somente
Um processo metabólico,
Pura química, simplesmente,
Não divino ou diabólico.

Criar vida é árduo processo
Uma tarefa complicada
Mas teve o homem sucesso
Nessa difícil empreitada.

Vida em laboratório
Criou-se em experiências.
Criticado, porém meritório
Foi o feito da ciência.

Mas têm almas esses seres
Da insana criação
De cientistas com poderes
Para tal abominação?

Não! Só Possuem na estrutura
Átomos e energia vital.
Não há nessas criaturas
Nada sobrenatural.

É possível que você
Venha em data futura
Fazer parte do meu ser
Compor a minha estrutura.

Desse modo a natureza
Cria sob essa visão
Uma forma, com certeza,
De uma reencarnação.

Eu garanto a vocês
A vida é uma só
E só se vive uma vez,
O resto é virar pó.

Meu currículo

Meu currículo
É ridículo.
Não sou Doutor
Não sou Professor
Não tenho instrução
Apenas inspiração.
Não recebi canudo
E aprendi tudo
Na triste e sofrida
Escola da vida.